Para participar do primeiro Concílio Vaticano foram convocados os cardeais, os bispos (tanto os titulares quanto os residenciais), os superiores gerais das ordens religiosas, os abades, os superiores das congregações monásticas. Todos estes que foram convocados tinham direito a voto deliberativo, assim como aconteceu no Concílio de Trento.

Além destas convocações, outras pessoas também poderiam ser convidadas para participarem do concílio, por exemplo os chefes de Estado, os não católicos. Em relação aos chefes de Estado, gerou-se uma grande discussão se era oportuno ou não convidá-los, já que muitos Estados romperam com a Igreja e outros passaram a persegui-la. Segundo Martina1, os tempos já tinham mudado, Estado e Igreja estavam separados em muitos países, em várias nações os governos seguiam uma política anticlerical, e, por vontade do papa, na bula de convocação não se fez nenhum convite às autoridades civis. Esse assunto entrou em debate porque havia uma tradição das assembleias conciliares em convidar chefes de Estado, mas, com a mudança do contexto político, ficaria bem difícil ser fiel a tal tradição. Apesar do convite não ter sido explícito, abriu-se a possibilidade de os chefes de Estado que quisessem participarem do concílio.

Se os chefes de Estado não receberam um convite formal, os protestantes e os ortodoxos receberam sim um convite oficial para participarem do concílio. A Igreja tinha esperanças de um possível retorno à unidade. “Quanto aos ortodoxos e aos protestantes, decidiu-se enviar, junto a uma Bula de convocação do concílio, uma carta exortando-os a retornarem à unidade romana, aproveitando a realização do concílio”2. Todavia, o conteúdo da carta era duro e inoportuno, o que causou maior resistência por parte dos bispos ortodoxos, e para piorar o clima, a carta foi publicada nos veículos de comunicação antes de ser recebida pelo patriarca de Constantinopla, fracassando de vez qualquer possibilidade de diálogo e participação por parte dos ortodoxos. “A iniciativa foi de repente rejeitada, até mesmo por causa do modo inoportuno como a carta foi anunciada, dando margem à suspeita de que Roma não levava na devida conta a dignidade dos orientais”1.

Discussões durante o concílio

O início do Concílio já apresentou momentos de dificuldades, pois o projeto de constituição sobre os erros do racionalismo, depois de examinado, foi logo rejeitado e devolvido à comissão para ser reelaborado. “Esse projeto de constituição compunha-se de dezoito capítulos, que constituíam uma espécie de Suma Teológica. Foi criticado por ser muito longo, pouco claro, escolástico demais e pouco ecumênico”2.

Outra discussão que acalorou o concílio foi a respeito da infalibilidade papal. Dos 600 que tinham direito a voto, cerca de 450 eram infalibilistas e 150 anti-infalibilistas. O primeiro grupo era composto pelos bispos de língua espanhola, os que provinham de missões, da Bélgica, a maioria dos suíços, italianos e norte-americanos, e a metade dos franceses; o segundo grupo era composto, em sua maioria, pelos bispos austríacos, alemães e húngaros. Os principais argumentos contrários a essa questão são: o fato de a Igreja ter passado dezoito séculos sem a necessidade desse dogma, a dificuldade para a prática do ecumenismo, ou seja, dificultaria as relações com os protestantes e os orientais, e possíveis dificuldades com os governos, pois tal dogma poderia sugerir uma superioridade do poder espiritual sobre o temporal.

Constituição Dei Filius

No dia 24 de abril de 1870, foi aprovada a primeira constituição do Concílio. Com o nome de Dei Filius, essa constituição mostrava que o concílio se opunha ao panteísmo, ao racionalismo moderno, ao materialismo. Havia na constituição “uma exposição densa e luminosa da doutrina católica sobre Deus, sobre a revelação e a fé, exposição que assegurava uma sólida base aos tratados de teologia fundamental”3.

É interessante notar que durante as discussões para se chegar a essa constituição, um bispo croata suscitou uma polêmica ao fazer um discurso provocativo, no qual lamentava “a presença, no texto, de algumas expressões pouco respeitosas em relação aos protestantes, sobretudo onde se dizia que o protestantismo era a fonte de todos os erros e males”2. O bispo croata, ao defender o seu discurso, utiliza-se do pensamento de Santo Agostinho e argumenta que os protestantes amavam a Jesus e, embora errassem, eles erravam em boa fé. Por causa disso, o texto sofreu uma melhoria e foram tiradas as passagens que não respeitavam os protestantes.

O texto da Dei Filius é composto por um proêmio, quatro capítulos, dezoito cânones com os anátemas, e um epílogo.

O primeiro capítulo, que tem como título Deus, criador de todas as coisas, expõe a fé católica contra o materialismo, o racionalismo, o panteísmo, o tradicionalismo e o fideísmo, considerados os mais importantes erros do século XIX. São erros que surgem de correntes filosóficas pautadas na autonomia do indivíduo, e, consequentemente, levam a negar a intervenção de um Deus pessoal e transcendente na história humana. Este primeiro capítulo, portanto, “proclama a fé num Deus pessoal e transcendente, que criou o mundo por livre vontade e sem qualquer tipo de ajuda”2.

O segundo capítulo fala sobre a Revelação. Afirma que Deus pode ser conhecido com as forças da razão humana. “A mesma Santa Igreja crê e ensina que Deus, princípio e fim de todas as coisas, pode ser conhecido com certeza pela luz natural da razão humana, por meio das coisas criadas”4. Entretanto, para conhecer as verdades sobrenaturais, a razão humana necessita absolutamente da Revelação. As afirmações do segundo capítulo vêm se opor ao deísmo e ao racionalismo absoluto.

No terceiro capítulo, que tem como título , fala sobre a fé não como algo cego, mas como uma adesão racional. A fé é uma virtude sobrenatural, pois o homem não crê nas realidades reveladas por Deus pela intrínseca verdade das coisas e sim pela autoridade de Deus que as revela.

O quarto e último capítulo aborda sobre a fé e a razão. O texto afirma que as duas ordens de conhecimento são distintas no seu princípio e objeto. Diz também que a razão não tem autoridade absoluta e que conserva um papel decisivo na caminhada para a fé. Embora a fé esteja acima da razão, não pode haver uma desarmonia entre ambas.

Uma serve de auxílio à outra, visto que a reta razão demonstra os fundamentos da fé e cultiva, iluminada com a luz desta, a ciência das coisas divinas; e a fé livra e guarda a razão dos erros, enriquecendo-a de múltiplos conhecimentos.4

Por fim, a constituição é concluída com dezoito cânones, considerando os erros que se propõe à doutrina proclamada, como heresias.

Notas

1 Martina, Giacomo. História da Igreja de Lutero a nossos dias; tradução Orlando Soares Moreira. São Paulo: Edições Loyola, Vol. III, p. 258-259.
2 Zagheni, Guido. A Idade Contemporânea: curso de história da Igreja; tradução José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 1999. Vol. IV, p. 145.
3 Mondin, Battista. Dicionário enciclopédico dos papas: história e ensinamentos; tradução José Joaquim Sobral. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2007, p. 576.
4 Concílio Vaticano I. Dei Filius. Constituição dogmática sobre a Fé Católica (24.04.1870), 11.