Muitas mulheres foram marginalizadas pela História Oficial. Sabemos que por muito tempo essa História foi escrita por homens que minimizavam a participação feminina no processo histórico, tornando-as praticamente invisíveis em muitos momentos. É preciso, portanto, recuperar e reescrever a trajetória dessas grandes mulheres que, por trás de uma aparente fragilidade e submissão, tiveram participação incontestável e decisiva em momentos importantes de nossa História.
Algumas mulheres foram na contramão desse movimento e conseguiram se cristalizar no imaginário coletivo em um papel similar ou preponderante aos homens de seu tempo. Esse foi o caso de Bárbara Heliodora Guilhermina da Silveira. Enaltecida em versos de seu marido - o poeta e inconfidente Alvarenga Peixoto - foi muito mais que uma musa. Bárbara ficou registrada na História como uma mulher ousada para sua época, que foi a primeira poetisa do Brasil e que exerceu papel importante nos desdobramentos da Inconfidência Mineira. Seu nome hoje está registrado em ruas, praças, escolas e cadeiras de Academias de Letras por todo o país como a poetisa e “Heroína da Inconfidência Mineira”.
Há muitos mistérios e lacunas na biografia de Bárbara Heliodora. Não foram encontrados seu registro de batismo, seu túmulo e seus restos mortais. Não há certeza sobre seu local e ano de nascimento ou sobre a grafia correta de seu nome: Bárbara Heliodora ou Bárbara Eleodora? Há várias interpretações sobre sua real participação na Inconfidência Mineira e sobre sua “loucura” nos últimos anos de vida. Há controvérsia até mesmo sobre a autoria dos poucos poemas que lhe são atribuídos.
Mas afinal, quem é essa “Bárbara Bela do norte estrela” que inspirou o poeta inconfidente Alvarenga Peixoto e se firmou no imaginário coletivo, há mais de dois séculos, como a bela e ousada “Heroína da Inconfidência Mineira”?
Alguns historiadores defendem que Bárbara nasceu em Minas Gerais, em São João Del Rei, baseando-se no registro religioso de seu casamento que assim a cita. Porém, outros acreditam que houve um erro nesse documento eclesiástico e que Bárbara nasceu em Goiás, já que seus pais viveram os primeiros anos de seu casamento nessa província. A falta do registro de batismo deixa essa informação em aberto. Quanto ao seu ano de nascimento, a certidão de óbito nos leva a inferir que tenha nascido entre 1758 e 1759.
Bárbara Heliodora viveu nas cidades mineiras de São João Del Rei, Vila de Campanha da Princesa e São Gonçalo do Sapucaí. Era de uma família tradicional e de grandes posses. Enaltecida por sua beleza, cultura e personalidade forte, a jovem Bárbara encantou o Ouvidor recém-chegado a Minas Gerais, Alvarenga Peixoto. A memória de Bárbara está entrelaçada a desse ouvidor, poeta e futuro inconfidente.
Inácio José de Alvarenga Peixoto nasceu em 1742, no Rio de Janeiro, e se formou em Direito em Coimbra, onde conheceu o poeta Basílio da Gama e iniciou sua própria produção poética. Em 1776, foi nomeado ouvidor geral da Comarca do Rio das Mortes e foi residir na Vila de São João Del Rei, onde também vivia a jovem Bárbara de 18 anos. Apesar dela também ser de uma família de posses e respeitada nas Minas Gerais, os dois se amasiaram e tiveram sua primeira filha antes do casamento, Maria Efigênia, em 1779. Somente em dezembro de 1781, Alvarenga e Bárbara se casaram, diante do oratório particular da casa dos pais dela. Depois disso tiveram mais três filhos.
Poderiam ter sido apenas mais uma família abastada e culta do Brasil Colônia, mas a participação no movimento da Inconfidência Mineira (1789) e seu desfecho trágico os tornaram mártires e símbolos da memória histórica brasileira. Alvarenga Peixoto é lembrado como um dos inconfidentes e um grande poeta árcade, porém ficou obscurecido pela memória de sua esposa que ganhou destaque como “Heroína da Inconfidência”.
O herói tem a função de espelhar o sentimento da Nação, mas quando esse herói traz a alegoria do feminino, ganha uma força poderosa. A República nasceu feminina em contraposição à figura masculina do rei e Bárbara Heliodora foi ganhando destaque como heroína na construção desse imaginário.
Bárbara foi associada à beleza, cultura e poesia, ousadia e modernidade, heroísmo, valores morais e loucura. Historiadores afirmam ou contestam tais atributos, que são de difícil comprovação documental. Porém, a força e sobrevivência de tais imagens já nos dizem muito.
Alvarenga foi o principal responsável por construir o imaginário da “Bárbara Bela” em suas poesias que enalteciam sua beleza. Mas outros poetas árcades, como Tomás Antônio Gonzaga e António Dinis da Cruz e Silva, também registraram sobre sua beleza. Depois deles, escritores, pintores e cineastas até os nossos dias reforçaram essa imagem.
Mas para além do papel de bela musa inspiradora, Bárbara tornou-se protagonista e poetisa. Apenas dois poemas são atribuídos a sua autoria – “Conselhos a meus filhos” e “Soneto à Maria Efigênia” - o que nos leva a alguns questionamentos. Bárbara produziu tão poucos poemas ou eles se perderam? Sabe-se que grande parte da produção poética de Alvarenga Peixoto e de outros inconfidentes ficou desaparecida após as represálias pela Inconfidência Mineira. Não aconteceu o mesmo com Bárbara? Ou será que seus versos foram silenciados pela tradição masculina na poesia?
Há discussão sobre a própria autoria desses poemas, sendo que alguns pesquisadores os atribuem a Alvarenga Peixoto. Não é mais uma tentativa de silenciar a ação e produção artística das mulheres ao longo da História? Afinal, sua formação, o convívio cotidiano com a poesia e o meio árcade em que viveu poderiam certamente ter estimulado a poetisa. Sua casa era conhecida como local de encontros constantes de poetas e intelectuais e, apesar de incomum, há relatos de sua presença e participação nesses momentos. Mesmo em número reduzido, os poemas atribuídos a Bárbara Heliodora a consagram como a primeira poetisa brasileira.
A Bárbara Heliodora são associadas características atípicas na época em que viveu, como ousadia e modernidade. O fato de se amasiar e ter uma filha antes do casamento; de manter seu nome de solteira; de cuidar sozinha do patrimônio e educação dos quatro filhos após o degredo de Alvarenga são alguns aspectos que reforçam essa imagem. Bárbara Heliodora tinha apenas 35 anos quando ficou viúva e em situação financeira bastante complicada.
A sociedade de Minas Gerais oitocentista tinha características diversas do resto do país e muitas vezes contrapunham-se aos preceitos católicos e patriarcais. Diante disso, as atitudes de Bárbara podem não ter sido tão atípicas assim na sociedade em que estava inserida. Alguns desses aspectos podem ser relativizados, mas não minimizam a força e singularidade dessa mulher.
Outra questão levantada é que ela contou com o apoio de outro inconfidente para reaver e gerir seus bens, seu compadre João Rodrigues de Macedo. Macedo escapou do processo da Inconfidência Mineira, apesar de sua ativa participação no movimento. Alvarenga, ao contrário, foi preso pela sua participação, teve seus bens confiscados e foi degredado para África, onde morreu logo após sua chegada a Angola. Bárbara conseguiu reaver a metade do patrimônio, alegando que era casada com divisão de bens e com a ajuda do poderoso Rodrigues de Macedo. Essa ajuda, no entanto, não impediu que Bárbara prevalecesse na memória coletiva como mulher atuante, independente e ativa economicamente. A personalidade forte de Bárbara também é reforçada nos poemas de Alvarenga que sugeriam sua influência sobre as decisões que ele próprio tomava, inclusive decisões políticas.
Bárbara bela, Do Norte estrela,
Que o meu destino Sabes guiar(Poema de Alvarenga Peixoto dedicado à sua esposa, remetido do cárcere da Ilha das Cobras).
É citada como incentivadora da participação do marido na Inconfidência Mineira e o teria impedido de delatar seus companheiros quando a revolta fracassou. Esse é o motivo de ser considerada a “Heroína da Inconfidência” em um movimento marcadamente masculino. Não há registros de sua ativa participação, apesar da cerimônia de batizado de seu terceiro filho, João Damasceno, cujo padrinho foi Tomás Antônio Gonzaga, ser considerada o marco inicial da Inconfidência e a senha que usavam: “Tal dia é o batizado”.
Apesar da possibilidade do seu envolvimento efetivo na Inconfidência Mineira ter sido silenciada pelo sistema patriarcal, há registros sutis de outras mulheres que participaram mais ativamente no movimento. Uma dessas mulheres foi Hipólita Melo que esteve presente nas discussões sobre os planos da revolta e ajudou o marido, Francisco Antônio de Oliveira Lopes, a escrever cartas aos companheiros sobre da Inconfidência. Permanece mais esse mistério sobre Bárbara Heliodora: qual foi sua real participação na Inconfidência Mineira? Será que atuou ativamente como Hipólita e outras mulheres silenciadas pela História?
Bárbara morreu aos sessenta anos, vítima de tuberculose, no dia 4 de maio de 1819 e foi enterrada na Igreja Matriz da cidade de São Gonçalo do Sapucaí. Seus restos mortais, entretanto, estão desaparecidos possivelmente devido a reformas ocorridas na Igreja ou translado descuidado de corpos para o cemitério local.
Foi propagada uma imagem de que nos últimos anos de vida ficou louca, demente. Alguns potencializam esse quadro retratando Bárbara vagando pelas ruas, chorando o degredo do marido, a perda dos bens familiares e a morte da filha Maria Efigênia por uma queda de cavalo. Uma imagem poética a descreve louca, recitando versos pela cidade, mas isso é pouco provável.
Alguns historiadores alegam que Bárbara jamais ficou louca ou demente, apesar do fato de ter sido interditada por esse motivo. Segundo eles, a interdição foi apenas uma estratégia para escapar de perdas financeiras e do fisco português. Alegam que Bárbara foi admitida na Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo de São João Del Rei e que essa era bastante rigorosa, não admitindo quem não estivesse em plena consciência. Portanto, a loucura é outro mistério na vida de Bárbara Heliodora, mas que é sempre rememorada em diferentes épocas.
Bárbara Heliodora, essa mulher de mil faces foi capaz de sair do silêncio relegado às mulheres na historiografia e se impor como heroína e protagonista de seu tempo. Que possamos dar voz a ela e a tantas outras bárbaras mulheres!