Há algum tempo eu estava andando com minha irmã por uma loja de departamentos no shopping da cidade de Dourados-MS, onde eu morava na época, e me deparei com o volume 1 do livro E o vento levou de uma edição de bolso, depois de uma pequena busca encontrei o volume 2, era o último exemplar disponível, fiquei interessada e resolvi comprá-los. Eu não sabia muita coisa sobre a história do livro, também não havia assistido ao filme, só sabia que ambos são considerados clássicos.

Demorei alguns meses para conseguir terminar de lê-los, passei madrugadas lendo, me angustiando e chorando com a trama chegando a parar a leitura por alguns meses de tamanho desconforto que me causava.

Ao terminar a leitura fiquei até altas horas da madrugada chorando compulsivamente, de encantamento pelo livro, e por Scarlett O’Hara, pela força, coragem e determinação desta personagem.

E o vento levou foi escrito por Margaret Michell, publicado na primeira vez em 30 de junho de 1936 pela editora Macmillan Publishers. Foi vencedor dos prêmios Pulitzer e National Book Award no ano seguinte ao seu lançamento e traduzido para mais de trinta idiomas, e para o braille e audiobook. O filme, baseado no romance, foi lançado em 1939.

A história se passa a partir do ano de 1861, na cidade de Atlanta no estado da Geórgia, localizada na região sul dos Estados Unidos. Neste momento histórico Atlanta está às vésperas da guerra civil norte-americana, também conhecida como guerra da Secessão, que aboliu a escravidão no país.

Os costumes da época, as descrições dos locais onde a obra se passa e as experiências vividas pelos personagens são descritos com muita riqueza de detalhes, por meio de uma escrita descomplicada que aborda principalmente o sofrimento e a luta do lado derrotado da guerra, mostrando que os costumes e o estilo de vida de uma sociedade foram levados pelo vento.

O livro nos conta a história de Scarlett O’Hara, uma jovem de temperamento forte, vaidosa, obstinada, impulsiva e egocêntrica. No início da trama Scarlett é apaixonada pelo jovem Ashley, que está prometido em casamento a Melanie Hamilton, prima do rapaz. O noivado do casal é anunciado logo nos primeiros capítulos em um churrasco na fazenda da família Wilkes, local em que Scarlett conhece Rheth Butler.

Dizem que uma pessoa apaixonada é capaz de cometer loucuras, bom, com Scarlett não foi diferente. Por amar Ashley ela aceita se casar com Charles Hamilton, irmão de Melanie, na tentativa de ficar próxima do homem amado. O casamento de Scarlett e Charles é realizado poucos dias após o noivado, assim como o de Ashley e Melanie, pois a guerra já havia sido anunciada e os homens da região iriam partir logo para lutarem por seu país.

Após dois meses de sua partida, Charles morre sem sequer ter chegado ao campo de batalha, envergonhando Scarlett. Ela havia engravidado em sua noite de núpcias, e após o nascimento de seu filho ela se muda para Atlanta e passa a morar com Melanie e Tia Pittypat Hamilton, ocupando-se de cuidar dos soldados hospitalizados, e de reuniões de costura para dobrar as ataduras que eram utilizadas nos cuidados com os feridos.

Scarlett participava dessas atividades por obrigação, ela não era como as outras mulheres sulistas patriotas que acreditavam na causa e nos seus bravos soldados. Entediava-se das longas conversas sobre a guerra, mas sabia que não podia demonstrar o que realmente sentia, então escondia da sociedade o que pensava e quais eram seus reais desejos. Era apenas Rheth quem não se enganava com seus fingimentos, ele sabia que na realidade ela era uma garota mimada que só se importava consigo mesma.

Rheth era conhecido pela sociedade sulista como o escandaloso patife de Charleston. Ele fez negócio como atravessador na guerra, e assim, fez sua fortuna, por este motivo era malquisto pelos sulistas. Para cuidar dos seus negócios, ficava meses fora de Atlanta, mas quando estava na cidade visitava Scarlett, tia Pittypat e Melanie, sempre levando presentes para que sua presença não fosse recusada por tia Pitty.

Por mais que tentasse não conseguia ficar muito tempo longe de Scarlett e sempre encontrava um pretexto para visitá-la, sentia-se completamente atraído por esta mulher indomável.

Scarlett sabia de seus encantos, era por meio das roupas e dos sorrisos que fazia semblante e encantava a todos os rapazes, essa era sua diversão favorita! Era apenas Rheth quem não se enganava por seus truques, ele conhecia o jogo da jovem e sempre que tinha a oportunidade a desmascarava dizendo para que não o tratasse como aos outros. Ele sempre a deixava furiosa, mas também encantada com a maneira como a conhecia.

Ao longo da trama Scarlett se põe a esperar por Ashley e por várias vezes chega a desejar a morte de Melanie para que então eles pudessem se casar. Por estar morando com Melanie ela tem informações sobre Ashley, pelas cartas que ele envia a esposa de tempos em tempos, mas Scarlett nunca consegue compreender o que ele escreve, assim como não entende porque ele permanece casado.

Melanie é descrita pela autora como sendo uma mulher pequena, de fisionomia frágil, sua descrição a assemelha a uma criança, o nascimento de seu primeiro filho deixa-a à beira da morte, foi um parto difícil e demorado, por este motivo o médico a adverte que ela não sobreviverá a outro parto. Ao saber disso Scarlet se pergunta: o que faz Ashley permanecer casado com Melanie? O que ele deseja nela? No livro O que quer uma mulher, de Serge André1, o autor explica que:

[...]Se a histérica se faz de homem, como afirmava Lacan, é na medida em que tenta cercar a feminilidade à maneira masculina, elevando-a ao nível de mistério escondido no furo do corpo. De onde decorre, certamente uma concepção propriamente histérica do corpo feminino.

Scarlett deseja o segredo da feminilidade ao fazer este questionamento, é de seu lugar de histérica, que ela se pergunta sobre o que aquele homem vê em outra mulher. Mas a resposta a este questionamento já havia sido respondida por Ashley no dia de seu noivado com Melanie.

Depois do anúncio do noivado, Scarlett consegue ficar sozinha com Ashley na biblioteca da casa dele, e assim, declara seu amor. Ele afirma que a ama, após ela insistir em querer saber de seu desejo por ela, mas alega que se casará com Melanie e explica (p. 116)2:

[...] ela é como eu: parte do meu sangue. E nos compreendemos um ao outro, Scarlett! Scarlett! Que palavras ei de empregar para fazê-la compreender que só se pode haver harmonia e paz num casamento, quando há afinidades entre os dois?

Ashley deixa claro nesta passagem que para ele o amor é baseado em afinidades, e ele sabe que não tem afinidades com Scarlett, e que ela não o compreende como Melanie.

O feminino é este vazio, falta algo que lhe diga o que é ser mulher, falta o falo. É este vazio de significante que Scarlett tenta preencher ao fazer estes questionamentos? Sabemos que o feminino é o momento do encontro com o vazio, será que Scarlett tem este encontro? Seria este encontro com o vazio o momento em que Ashley se declara fraco e fala de sua falta? Este é o momento em que se torna mulher? Ou este encontro com o vazio é o momento em que ela se percebe sozinha, após a morte de Melanie?

Com a morte de Melanie a personagem percebe que perdeu todos os que realmente amou, em suas palavras diz (p. 947)2:

Havia meia hora apenas que pensara ter perdido tudo quanto possuía no mundo, menos a fortuna. Tudo quanto tornava a vida desejável: Ellen, Gerald, Bonnie, a Bá, Melanie e Ashley. Precisou perder todos eles para sentir que era a Rheth que ela realmente amava... amava-o porque era forte e sem preconceitos, apaixonado e realista, como ela mesma [...].

Em seu leito de morte Melanie pede para que Scarlet seja boa para Rheth, pois ele a ama. É neste momento que Scarlett descobre que o ama, ela acreditou por anos que amava Ashley, foi em busca da realização deste amor e lutou por ele como pode. Foi por acreditar no seu amor por Ashley que ela se cegou ao seu amor por Rheth e a amizade de Melanie.

Ela percebia que se sentia atraída por Rheth, além de sentir-se segura e compreendida por ele como não era por mais ninguém, mas ao mesmo tempo ignorava tais percepções e voltava seu pensamento para Ashley. Scarlett não sabia que o que sentia era amor!

Foi por meio da fala de Melanie, desta mulher, porém não qualquer mulher, a mulher que esteve ao seu lado nos momentos mais difíceis de sua vida, a única que a amava e respeitava, uma verdadeira amiga e dama. Melanie ocupa o lugar da outra mulher na vida de Scarlett, assim como a Senhora K era a outra mulher para Dora3. No caso Dora, a senhora K é a dama, para Scarlett a verdadeira dama era a sua mãe e Melanie foi nomeada dama por Rheth. É Melanie, esta mulher, esta dama, que faz com que Scarlett descubra o amor que sente por Rheth.

Este é o momento em que cai a fantasia de seu amor por Ashley2 (p. 941):

[...] Esse amor nunca existiu senão em minha imaginação. Eu amei apenas uma coisa que construí e que está tão morta quanto Melanie. Eu vesti essa ficção com lindas roupas e apaixonei-me por ela. Quando Ashley surgiu, montado a cavalo, tão formoso, tão diferente, eu o vesti com as roupas da minha fantasia e obriguei-o a usá-las, assentassem-lhe bem ou não. Nunca quis ver quem ele era na realidade. Continuei a amar as lindas vestes... mas não a ele [...].

O momento da morte de Melanie, o momento em que caí a fantasia de Ashley, o momento em que Scarlett descobre o quanto ama Rheth é também o momento em que percebe que talvez ele não esteja mais disponível para ela, mas ainda assim, enche o coração de esperanças e vai procurá-lo para lutar por seu amor.

Durante toda a obra é possível observar que Scarlett está em busca do objeto perdido, esta busca por estes homens/objetos perdidos seria uma repetição ao complexo de Édipo não resolvido na personagem? O desejo pelo pai, que é o homem de sua mãe, a única mulher que Scarlett respeitava e admirava, uma verdadeira dama. Seria esse amor por Ashley uma repetição deste triângulo amoroso? Pois Melanie é uma verdadeira dama, de acordo com Rheth a única dama que ele conheceu, e é com Melanie que Scarlett fica por anos lutando para ter o amor de Ashley.

Scarlett não era uma dama, Rheth sabia disso muito bem e a admirava por isso. Para sobreviver ao pós-guerra, período de reconstrução do país, ela fez de tudo, foi por ela, por sua força que sua família sobreviveu, ela colocou a mão na terra, trabalhou na fazenda da familia coordenando o que todos tinham que fazer e também colocando a mão na terra para que eles tivessem o que comer. Scarlett lutava pelo que acreditava, pelo que desejava e fez o que foi preciso para viver, seria ela então a verdadeira Mulher? Lacan4 nos diz em Real, Simbílico e Imaginário:

[...] se eu devesse localizar em algum lugar a idéia de liberdade, seria evidentemente numa mulher que eu a encarnaria. Uma mulher, não forçosamente qualquer uma, já que elas são não todas e qualquer uma desliza para toda.

Lacan nos mostra nesta passagem que as mulheres são ligadas no universal, elas são uma há uma, e assim, mais livres. Seria Scarlett um exemplo desta liberdade da mulher? Da liberdade de ir em busca de seus desejos mesmo quando se percebe ter estado cega diante dele?

Para mim, a determinação de realizar seu desejo é o feminino em Scarlett. Assim, encerro meu texto com o último parágrafo do livro para exemplificar a força desta personagem que mesmo diante das adversidades encontra uma maneira de seguir caminhando.

Com o espírito da sua raça que, mesmo diante da derrota, não a reconhece, Scarlet levantou a cabeça. Havia de reconquistar Rheth. Tinha a certeza absoluta disso. “Amanhã em Tara, hei de pensar em tudo isso. Então terei mais forças. Amanhã pensarei no meio de o fazer voltar. E além disso, amanhã é outro dia.2

Notas

1 André, S. O que quer uma mulher? Jorge Zahar Editor, p. 139, 1987.
2 Michell, M. E o vento levou. Edição integral. São Paulo: Círculo do livro S.A, 1984.
3 Freud, S. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de José Octávio de Aguiar Abreu. Rio de Janeiro: Imago, 1901-1905. v. VI.
4 Lacan, J. Real, simbólico e imaginário. 1974-1975.