Ao entramos na baixa lisboeta vindos do rio, confrontamo-nos com o Arco do Triunfo da Rua Augusta (inaugurado em 1875, demolida a sua primeira versão do pós-terramoto de 1755), que é encimado pelo conjunto de figuras de Célestin Anatole Calmels, trianguladas sobre uma legenda que as justifica (VIRTVTIBVS MAIORVM VT SIT OMNIBVS DOCVMENTO.PPD: “Às Virtudes dos Maiores, para que sirva a todos de ensinamento. Dedicado a expensas públicas”): a Glória a coroar o Génio e o Valor. Por baixo, o grupo escultórico de Vítor Bastos reúne Nuno Álvares Pereira, Viriato, Vasco da Gama e o Marquês de Pombal ladeados, à esquerda, pelo rio Tejo e, à direita, pelo rio Douro, circunscrevendo os lusitanos das nossas míticas origens.
São essas memória e lição iconografadas oferecendo-se como caminho in hoc signo para nós que parecem observar o rio desaguando no mar, a história sectorial numa mais vasta e globalizante. Uma composição marcada pelo equilíbrio da figura superior semelhante a uma versão da alegoria da justiça e da sua balança. Imagem que nos faz deslizar ainda para uma outra afim: a da ‘balança do poder’, quer no plano nacional (entre os poderes estatais), quer no internacional (balance of power policy).
Podendo nós buscar na antiguidade clássica a origem dessa ideia de ‘balança do poder’ (em Políbio, Cícero e S. Tomás de Aquino, dentre outros), a verdade é que a vemos ressurgir na Europa do séc. XV com Francesco Sforza (Milão) e os Médici (Florença), de acordo com a teorização de Maquiavel e de Francesco Guicciardini, e, mais tarde, com a Paz de Vestfália (1648) e o tratado de Utrecht (1713). Depois, será ‘empunhada’ por David Hume (On the Balance of Power, 1742) e por Emmerich de Vattel (Le Droit des gens, 1758), mas também por Maurice Hauriou, Montesquieu e Jefferson (com o sistema de checks and balance), equacionada pelo Concerto da Europa (Congresso de Viena, 1815) e retomada nos sécs. XX e XXI por autores como T. V. Paul, James J. Wirtz, Michel Fortmann (Balance of Power: Theory and Practice in the 21st Century, 2005), Mark Williams (no episódio "Balance of Power", 1988, do televisivo Red Dwarf), Tom Clancy (no cinematográfico Balance of Power, 1998), etc..
Enfim, o roteiro é minimalista, mas suficiente para sinalizar que, contrastando com o protagonismo individual ou mágico (na ficção de Tolkien), sob a dissuasão do poder nuclear partilhado e vigiado (Quality of Life, Balance of Power, and Nuclear Weapons, 2015, de Alexander V. Avakov, p. ex.), e a guerra fria, quiçá ainda com resquícios de um optimismo comtiano, tudo concorreu para nos pacificar numa convicção de caminhada da humanidade para a paz e a harmonia universais no interior das comunidades e entre elas. Sonho que nos embalou algumas décadas e projectos do séc. XX após as guerras traumáticas…
Era a perspectiva de equilíbrio e de regulação da ordem que os tratados modernos e a construção da Europa reforçaram. A confiança na ‘comunidade internacional’, no seu bom-senso, na sua defesa do mais fraco e na sua intervenção decisiva…
Em poucos anos, essa convicção dissolveu-se e acordámos de uma pandemia, perplexos e suspensos face a um mundo convulsionado, a explodir.
Entre nações: as guerras rebentaram no ocidente e no oriente com uma violência que, além de demolidora das gentes e das terras, parece tornar-se incontrolável, a ponto de responsáveis políticos virem avisar as populações de que devem ‘preparar-se’ para uma guerra mundial.
Dentro de cada nação: com as clivagens geracionais agravadas pela falta de condições para alguma forma de coesão social (cada uma entregue à sua angústia e à sua carência, divididas entre alojamentos de grupo que as deixam mais vulneráveis numa sociedade desumanizada pela informatização administrativa); com a inevitável sangria emigratória dos mais preparados da geração do futuro e a imigração massiva das mais diversas origens, ambos incapazes de apoiar os seus de outras faixas etárias; com uma máquina política que se tornou indústria de formação partidária com empregabilidade à vista e movida pelo aceno hipnótico do eldorado estrangeiro (trans- e supra-nacional).
Ambos os protagonistas, nação e indivíduo, com as identidades em erosão: as individuais e as colectivas tradicionais (políticas, empresariais e outras) sob o fogo de um revisionismo que rasura a inteligibilização das circunstâncias (sócio-epocais) através de uma avaliação anacrónica da factualidade…
Transversalmente, embebendo tudo: a cedência da ética à legalidade, o sentimento de uma legalidade questionável e de um sistema judicial travado pelos seus próprios procedimentos, da corrupção e da impunidade generalizadas, a sistemática acusação mútua e a impotência das vítimas de seja o que for, a ameaça dos problemas globais climáticos contestada pelos que os consideram cíclicos…
Eis, pois, um cenário preocupante. Alguns, dizem-no de transição para uma nova ordem, com novos valores e poderes (um genérico da SIC afirma-o diariamente), mas sem prospectiva definida. Há os que vêem na modernidade essa liquefacção de valores, da ordem, dos sentimentos, das relações e afins (Scott Lash, Ulrich Beck, Zygmunt Bauman e Anthony Giddens), embora sem vislumbrarem o que se lhes seguirá. Outros, como num debate que acabo de ouvir, afirmam que é o momento da emergência dos Churchills, há muito desejados. Outros, ainda, temem que se agigantem os radicalismos…
Eis-nos, assim, gentes, nações e mundo, ‘parados no meio do caminho’, para recorrer ao título de Miguel Real caracterizando o Portugal de 2000-2015, receosos de olhar para trás (como Orfeu e Ló) e temerosos de buscar o futuro, como o Angelus Novus (1920), de Paul Klee, na sua reinterpretação por Walter Benjamin… E agora, Humanidade?...