É interessante a atividade da escrita. Cheguei ao computador com uma ideia, com um caso para contar, mas algo misterioso quis me levar para outra direção. É incrível como o teclado — no passado, a caneta — desobedece a vontade da gente e sai trilhando caminhos outros, quase por conta própria. Quanta indisciplina!
E tentar contrariar esta força misteriosa é ficar com uma tela em branco na frente, passando por aquele sofrimento de escrever e apagar, ler e reler, avançar e recuar, sem desfrutar do chamado “correr da pena”, que vai derramando texto de uma forma mais espontânea e contínua.
É quase como um surfista, que fica ali flutuando, olhando para o horizonte e acaba escolhendo uma onda: se posiciona, aponta a prancha para a terra, nada apressadamente, nada, nada, nada e... nada! Não estava no tempo certo: escolheu a onda, mas ela não o escolheu. Até que, de surpresa, aparece outra onda que o escolhe e aí, com pouco esforço, nada um pouco ou quase nada, e sai deslizando num passeio contínuo e equilibrado, praticamente andando sobre as águas.
Saiba o leitor que minha intenção era contar uma situação vivida há muitos anos no ambiente de trabalho, mas provavelmente não era o tempo certo. O teclado me levou para um fato da semana passada. Vamos na onda!
Passou-se num shopping, local que para mim é tal como um cemitério: só vou por obrigação ou solidariedade. Uma mãe, de mãos dadas com o filho de uns 7 anos, vinha pelo corredor em sentido oposto ao meu. Ao passar diante de uma loja, ela viu algo na vitrine e disse ao menino:
— Filho, vamos entrar aqui um instantinho.
O garoto teve uma reação inesperada e desesperada. Plantou as duas mãos na altura do umbigo da mãe e passou a dar-lhe sucessivos empurrões, gritando:
— Não! Você não vai entrar aí! Sai! Sai! Sai!
A veemência do menino era tamanha que parecia querer salvar a mãe da morte certa que teria ao entrar naquela loja. Ela sorria sem graça e, timidamente, chegou a insistir que seria rápido, só uma olhadinha. Mas o menino negou-lhe esta possibilidade e prosseguiu com os gritos e safanões.
Ao final, restou a ela aquiescer:
— Tá bom. Tá bom. Vamos embora.
Pegou a mão dele e seguiram pelo corredor. Fiquei pensando no que aquele garoto aprendeu deste episódio...
O caso, aparentemente banal, me fez lembrar de uma passagem da minha infância, quando tinha mais ou menos 10 anos de idade. Eu estudava num colégio perto de casa, o que me permitia ir sozinho e a pé, naqueles tempos mais calmos do Rio de Janeiro.
Certo dia, eu fazia o dever de casa — coisa que nem sei se ainda existe — quando minha mãe, de passagem, observou algo diferente:
— Que borracha é essa, meu filho?
— Borracha de apagar — respondi, já meio tenso.
— De quem é essa borracha?
— É minha, mãe.
— Como é sua? Eu não comprei esta borracha para você.
— Mas é minha. Eu achei!
— Achou? Aonde?
— Na rua, mãe. No caminho do colégio para casa. Estava no chão.
— Ah é? Pois então não é sua. Você vai voltar lá e deixar a borracha no exato lugar onde ela estava.
— Mãe, achado não é roubado. Qualquer pessoa vai encontrar e ficar com ela.
— Você não é qualquer pessoa. Quando achar alguma coisa procure o dono. Nunca fique com algo que não é seu. Volte lá agora.
— Mãe, mas...
— Vai agora. Depois você continua a estudar.
Saí cabisbaixo e contrariado. Não conseguia entender por que aquela borracha não poderia ser minha, se estava perdida, sem dono. E que olho era aquele da minha mãe, que com tantos objetos em volta, bateu exatamente em cima do que eu havia encontrado. Parecia que ela tinha um tipo de detetor automático de falhas! E um corretor automático também.
Fiz o caminho inverso e fui pela mesma calçada, pensando no ridículo que seria abaixar-me e depositar no chão aquela borracha novinha e tão boa. Era a mesma coisa que jogar fora algo útil, que poderia ser utilizado por muito tempo ainda. Um desperdício!
Chegando ao local, olhei para os lados para me certificar de que ninguém me observava. A calçada estava vazia, felizmente. Tirei a borracha do bolso e com discrição, como se estivesse amarrando o sapato, coloquei-a no lugar que me parecia ser o de origem do achado.
Iniciei o caminho de volta. Dei alguns passos e parei. Resolvi esperar um pouco e tentar conhecer o felizardo que iria desfrutar da borracha. Porém, logo concluí que isso era uma bobagem e desisti. Retomei a volta para casa.
Estranhamente, no caminho de retorno comecei a me sentir mais conformado. Na realidade, eu já tinha uma borracha comprada pela minha mãe e, portanto, não precisava de outra, embora aquela achada fosse muito melhor do que a minha. Talvez o dono a encontrasse e assim, a história teria um final feliz.
Cheguei em casa tendo deixado na rua a borracha e boa parte da contrariedade.
Minha mãe me aguardava:
— Pronto, mãe.
— Ótimo. Me diz uma coisa: a borracha serve para que?
— Para a gente apagar os erros.
— Foi isso que você fez!
Não sei como, mas deixei de lamentar a falta daquela borracha. Fui dormir feliz, com uma sensação boa que na época eu não sabia explicar.
Não sei por que me lembro disso, mais de 50 anos depois, como se fosse ontem.
Fiquei pensando no que aquele garoto — eu mesmo — aprendeu deste episódio...