2023 já passou e será considerado um ano atípico para o cinema. Não foi um ano comum, não. Há muito tempo não temos uma safra cinematográfica tão boa, não em quantidade, mas com alguns poucos filmes de altíssima qualidade.
O mais recente, que estreou por aqui quase nos acréscimos do ano, foi “Maestro”, escrito, dirigido e interpretado por Bradley Cooper. Infelizmente, ficou pouco tempo em cartaz nos cinemas, mas está disponível na Netflix.
“Maestro” é uma biografia do grande compositor e regente americano Leonard Bernstein. Não, não se trata exatamente de uma biografia. É um filme sobre o relacionamento entre Lenny (Bernstein) e sua esposa, Felicia. Ele, como adiantei, é interpretado pelo próprio Bradley Cooper. Na realidade, é mais do que isso. Leonard Bernstein é personificado por Bradley, uma interpretação magistral. Daquelas que podemos apostar em um Oscar.
Calma... e o Di Caprio e o De Niro em “Killers of the Flower Moon”? E o Cillian Murphy e o Robert Downey Jr. em “Oppenheimer”? Páreo duríssimo este ano. A arte não pode ser uma competição, mas é impossível não compararmos os trabalhos magníficos desses atores em 2023. Quem ganha com todos eles somos nós, os amantes do cinema.
“Maestro” é centrado na figura de Bernstein, mas Bradley (diretor) cria o espaço suficiente para o brilho da personagem Felicia Montealegre, esposa de Bernstein, numa interpretação também magistral de Carey Mulligan, atriz inglesa já indicada duas vezes aos Oscars. Felicia é uma personagem extremamente complexa, assim como Lenny. Ela o carrega ao longo da vida, é a sua força motriz, como pessoa e como artista, mesmo enfrentando a personalidade difícil, meio esquizofrênica, de Lenny.
Em uma brilhante sequência do filme, numa entrevista para a TV, Bernstein admite essa esquizofrenia, onde duas personalidades convivem dentro de si: a do artista, a celebridade, o primeiro grande regente americano, vaidoso, cercado de amigos, ao mesmo tempo em que o criativo e premiadíssimo compositor é solitário, recluso em seu estúdio, comunicando-se com o mundo de uma forma muito particular. Bradley (roteirista e diretor) conseguiu transmitir todas essas camadas no texto e na direção, enquanto Bradley (ator) deu vida de uma forma absolutamente crível ao personagem.
O filme é uma história de ficção, naturalmente, mas em certo momento nos desprendemos dessa ficção e parece que estamos assistindo a um documentário sobre a vida íntima de Bernstein e Felicia. É como se a câmera de Bradley entrasse na vida, na casa, na família, voltando no tempo e presenciando conflitos de uma forma quase "voyeurística". A escolha da cinematografia em preto e branco e no formato 4:3, com a tela quase quadrada (como as TVs de antigamente), não poderia ser mais acertada. Nesse formato, vemos a ascensão do jovem Bernstein, a paixão por Felicia, o pacto e o amor entre os dois, a prosperidade do casal. Quando a cor entra no filme, estamos mais próximos da vida familiar e conjugal, a realidade é mais crua, os sinais do desgaste do relacionamento são mais presentes. É um banho de realidade sobre aquele conto de fadas que assistíamos há pouco.
“Maestro” é uma história de amor, um recorte na vida de duas pessoas cujas personalidades as uniram e as afastaram, que criaram uma família e fizeram de tudo para mantê-la unida, até o limite de cada um. Bradley Cooper dedicou-se de corpo e alma ao projeto de “Maestro”, estudando piano, regência, convivendo com os filhos de Bernstein, na casa de Lenny e Felicia, onde, por sinal, foram filmadas algumas sequências do filme. Nós, espectadores, nos desligamos do ator na primeira cena e mergulhamos num Bernstein por inteiro, numa personificação de rosto e de voz impressionantes.
Como diretor, todas as suas escolhas criativas são bem estudadas e resultam num ritmo e num espetáculo visual. “Maestro” é um filme que teve anos de preparação, nas mãos de um diretor quase estreante. “Maestro” é o segundo filme dirigido por Bradley Cooper, depois de “Nasce uma Estrela”. É uma obra criada por um artista que conhece profundamente o cinema, que aprendeu o ofício na prática, trabalhando com grandes diretores. Ele é uma promessa para essa arte tão carente de novos talentos e de grandes filmes. Graças a “Maestro” e aos outros grandes filmes do ano, 2023 não passará em branco na história do cinema.