Desde os nostálgicos dias de escola, todos os professores me ensinaram – se houve exceção, já nem recordo – que os mitos são a primeira tentativa de explicação da realidade. Um pouco mais tarde, já nos últimos anos, me foi ainda ensinado que os sistemas religiosos primordiais eram uma forma que, se não os Estados, tinham para controlar a sociedade; os homens os tinham para justificar o patriarcado. Disso, decorrem algumas naturais conclusões.
A primeira das conclusões é que só existem duas fontes para o surgimento do mito e de uma religião: ou é a ignorância ou é o poder. A ignorância porque o homem, ausente de consciência, pensamento crítico e preso em seu sistema religioso, revestia o seu mundo com fantasias ditas pelas autoridades. O poder porque algumas supostas autoridades manipuladoras viram nos mitos uma oportunidade de manter o seu domínio frente aos ignorantes.
A segunda das conclusões é que isso gera um ceticismo geral a todas as religiões, como se elas fossem um resquício daquele homem antigo e, por isso, inferior. Nesse sentido, as religiões carregam, no máximo, um valor cultural, acidental e entretivo; mas nunca metafísico.
A terceira é que esse pensamento causa um desinteresse extremo pelos estudantes de pesquisarem sobre a religião greco-romana primordial, acreditando ser as obras platônicas e aristotélicas a fundação do pensar ocidental, como se tudo o que as precedesse fosse especulação mitológica. Trata-se da origem remota da sociedade greco-romana como fruto de um capricho de homens ignorantes e egoístas, seres fracos incapazes de suportar a dúvida e desesperados por sanar seus espíritos com contos fantasiosos.
Neste artigo, com especial enfoque na terceira conclusão, pretendo pôr em dúvida os pressupostos que temos sobre os antigos e as sociedades tradicionais, assim como o ceticismo moderno quanto aos sistemas religiosos. Digo “pôr em dúvida” porque estou longe de uma conclusão efetiva, me faltam obras essenciais que vão desde Hobbes e Espinoza até Marx e Nietzsche, autores estes que também foram responsáveis por essa leitura da história da humanidade. Além desses autores, ainda me falta estudo acerca de autores psicólogos e psiquiatras que defendem ser a religião fruto da psiquê.
Até o momento, citei sobre os gregos e os romanos porque eles serão o pano de fundo para a argumentação. Longe de servir como caso único, a história do povo greco-romano mostra como o espírito humano e suas crenças são responsáveis pelas estruturas sociais e suas mudanças. Mas, para abordar a história desse povo, usarei um relato de sua origem mais remota, como foi escrito em “A Cidade Antiga”, de Fustel de Coulanges. Apesar de Fustel carregar aspectos positivistas, sua análise feita do modo de vida dos “gregos primordiais” é, ao menos, uma tentativa de ser imparcial.
Aquilo que é chamado de “A Cidade Antiga” seria a primeira estrutura social dos gregos e dos romanos – e possivelmente dos indianos. Ela teria sua fundação na Idade do Bronze (3300 a.C. – 1200 a.C) e teria durado até o início do Império Romano (27 a.C). Essa estrutura seria baseada na religião; e esta religião, por sua vez, seria constituída de três aspectos essenciais: culto aos ancestrais, culto ao fogo do lar e centralização sacerdotal e política no pater da família. Esses três aspectos não eram fingidos nem fantasias inúteis, mas eram a base da cosmovisão desses povos. Peço ao leitor que leve consigo esses três aspectos citados até o fim do texto, eles serão essenciais para todos os parágrafos a seguir.
O drama de Édipo Rei mostra como as crenças tomavam todo o ser da pessoa. Ele não era aquele rei maquiavélico e manipulador que se vê nas histórias e contos atuais – nos escritos de Sófocles, manipula-se tudo, menos os deuses. Édipo não furou os próprios olhos porque sentiu o peso da culpa moral de ter matado o próprio pai e se casado com a sua mãe, mas porque ele profanou algo anteriormente sagrado: a família, os heróis fundadores das cidades e os deuses ancestrais – todo o cosmos estava manchado por seus atos. Aquilo que um dia fora belo, tornou-se feio, já não era possível encarar nada.
Em Ilíada, os soldados não se preocupavam com os corpos dos guerreiros fortes por capricho, naqueles corpos residiam potenciais objetos de culto, que deviam ser enterrados no lar a fim de assistirem pelo fogo da família – eles estavam dispostos a morrer pelo cadáver. Tal foi a lástima dos troianos e dos deuses quando Aquiles não quis devolver o cadáver de Heitor.
Não me parece justa a interpretação de que tudo isso era ou um delírio coletivo ou uma ferramenta de manipulação. Uma análise que parte do pressuposto de que todas as coisas são extremamente sérias me soa, inclusive, mais realista. Aqueles mitos, para o homem grego, não passavam pelos seus ouvidos como mentiras que ele tolerava, aqueles mitos eram toda a fundação do Cosmos. Os mitos não eram uma tentativa de explicação do mundo, os mitos sequer eram uma tentativa, mas a própria história real e efetiva – a única que poderia existir. Não se podia cogitar um mundo ausente dos deuses, ou o mundo é e os deuses são, ou não há mundo.
Agora, eu disse que se despreza a religião greco-romana e seus mitos por considerarem que tudo isso era capricho dos antigos, partindo desses pressupostos, Sócrates seria um semi-revolucionário, uma quebra de paradigma que separa o mundo mitológico do mundo filosófico. Mas mal se sabe que os tempos socráticos já eram tempos onde já se passaram três revoluções que mudaram a estrutura da sociedade e, por consequência, da religião.
O grego geral dos contos homéricos é totalmente diferente do ateniense dos tempos socráticos. Pode-se dizer que se eles se encontrassem, teriam repulsa um ao outro e viveriam separados. Se, por um lado, eles têm a mesma origem, por outro, seus costumes e crenças são extremamente diferentes. Nos dias de Sócrates, os três aspectos essenciais ditos no começo já estavam em queda: não precisava ser da família para ter culto, o fogo do lar não era restrito e as autoridades políticas estavam já desligadas das autoridades sacerdotais. É nesse ambiente que nasce o que chamamos de filosofia.
Pode-se argumentar que Atenas foi uma cidade que manteve bastante dos costumes da religião antiga e que, portanto, a filosofia foi uma quebra total e essencial de paradigma. E de fato era dessa maneira, mas, para esse “novo grego”, os ritos já não tinham o mesmo efeito que tinham nos tempos homéricos.
O grego dos tempos de Aristóteles já estava muito distante daquela religião primordial que havia fundado a ordem entre os homens. Esse grego vivia sob um Estado que já não era, por assim dizer, todo religioso. A democracia ateniense dos tempos de Aristóteles era algo totalmente diferente de séculos atrás – que mais parecia uma oligarquia, e que tinha sua fundação na religião grega.
Portanto, se não foram os primeiros filósofos os totais responsáveis pela quebra de paradigma com a antiga religião, foi outra coisa: o natural movimento do espírito humano que estava imerso nos mitos. Se as mudanças internas geraram mudanças na estrutura social ou se foi o contrário, eu já não sei, entretanto, pesquisando sobre a história greco-romana, pode-se perceber movimentos enormes no sistema religioso. Entre Teseu (aquele que supostamente unificou as tribos do Ártico e governou Atenas) e Sólon (um legislador que mudou drasticamente as estruturas sociais em Atenas) existe uma história menos conhecida que importante.
Vale ainda ressaltar duas coisas. A primeira é que o rompimento dos laços com a antiga religião não foi um movimento único, foi algo que levou mais de um milênio. A segunda é que os primeiros filósofos não eram contra a religião, em verdade, eles estavam imersos nos ritos religiosos tanto quanto estavam também distantes das crenças originais. Só com essa perspectiva é possível lê-los, pois, de outro modo, não se entenderá suas influências e nem sobre o que eles estão falando. O contexto em que eles se encontravam não era mero aspecto acidental que reflete em suas obras, mas aspectos essenciais, sem os quais não haveria filosofia.
E é justamente esse contraste que Fustel de Coulanges pretende mostrar: os costumes, as crenças, o modo de vida, as leis, a estrutura social e tudo o mais era definido pela religião. Detalhe, sequer se pensava no conceito de justiça. Num primeiro momento, a preocupação do homem era não incitar a ira dos deuses; se a coisa era justa ou não, isso era uma mera consequência, era um fator secundário.
A preocupação com a justiça teria surgido nas cidades, quando a religião não conseguia satisfazer às massas – pois a religião grega era extremamente elitista e aristocrática, era uma religião doméstica, não universal, com crença nos ancestrais. Esse sistema religioso era capaz de suprir apenas as necessidades da família. A coira era de tal modo que o estrangeiro, não sendo da família, também não tinha leis. Isso porque a fundação da cidade estava relacionada com a fundação do lar, este, por sua vez, tem um ancestral responsável por isso.
Mas também não se pode dizer que esses mitos eram apenas um subterfúgio para o patriarcado manter a unidade da família, pois a família não era a causa da religião, mas o contrário. Não era parente aquele que tinha o mesmo sangue; parente era aquele que tinha o mesmo deus, de modo que o bastardo não era parente, era estrangeiro, apesar de ter o mesmo sangue. Aliás, o patriarcado greco-romano também estava longe de ser a causa dessa religião.
Perceba que todos estes processos sociais não tinham fundação em si mesmos, não eram causas, mas causados. O homem moderno, ao analisá-los, sempre percebe a coisa de maneira contrária: a religião era um sintoma de um sistema aristocrático e que servia apenas para manter essa aristocracia no poder. Novamente, se incorre no erro de achar que nada disso era sério, que o homem se satisfazia com pequenas mentiras levianas.
A mesma espécie de análise desonesta – que considera tudo uma ferramenta de uma aristocracia manipuladora – recai sobre a história do judaico-cristã. Como se a fé dos hebreus não fosse uma resistência contra a escravidão, como se os primeiros cristãos não tivessem resistido contra a opressão romana. Tudo é, por assim dizer, fingido, atuado, maquinado.
Se sempre procuramos nos outros aspectos comuns a nós mesmos, me pergunto se tais interpretadores não são eles mesmos desonestos e fingidos.