Você já parou para perceber que é comum andarmos pelas ruas e avenidas do Brasil e nos depararmos com instituições ou valores religiosos?
São evangélicos vendendo canetas nos ônibus à serviço de ONGs, propagandas com orações, a Ave Maria que toca na paróquia às 18h em ponto e o bairro inteiro ouve, despachos com velas pretas feitos nas encruzilhadas, testemunhas de Jeová vendendo seus livros nas praças, as referências aos orixás e entidades nos sambas e pagodes.
Toda vez que vejo um grupo religioso, os pensadores Émile Durkhein e Sigmund Freud “brotam” em minha mente. Eles comentaram sobre alguns aspectos importantes que podem ser analisados sobre a ótica da religião.
Freud fala que o indivíduo religioso é um bebê. Para ele, a criança busca em sua essência o cuidado de um pai ou mãe. A partir do momento que ele cresce, este toma consciência de si e do mundo, tomando sozinho o caminho da vida por meio de suas ações. Entretanto, quando um adulto decide ser religioso, é como se ele voltasse para este estágio infantil.
Isso acontece porque o peso da realidade é tão grande, que buscamos “amuletos” para fugir ou nos ajudar a suportar o cotidiano, comportando-se como criança que busca uma figura de referência para si.
É o mesmo Freud que, no texto Luto e Melancolia, aborda sobre os traumas humanos. Para ele, todos nós possuímos feridas abertas que precisam ser tratadas em terapia. Cada um de nós desenvolve amor por determinados objetos (pessoas, animais ideologias, lugares, etc.) e quando perdemos, passamos a percorrer o caminho do Luto ou da Melancolia.
O luto, é a exercitação dessa ferida, em que o indivíduo “coloca o dedo” no machucado, chora e diminui sua relação com o objeto em que ele tinha uma projeção amorosa. A pessoa não esquece, mas a imagem do objeto perdido em sua mente não gera dor.
Já no caso da melancolia, tratamos de um caso clínico. A pessoa não consegue largar a dor ao objeto amado e revive a situação traumática dia após dia. Sabe aquela sensação de que você teve um “gatilho”? É como se você estivesse preso na situação. Isso é sinal de que você tem uma ferida aberta e precisa curá-la. Se possível, procure um psicólogo.
O que isso tem ligação com a religião? Voltando ao que Freud fala sobre a o bebê, crer em seres espirituais e entregar sua vida em prol de uma causa religiosa seria uma tentativa de sarar a ferida aberta por meio de um trauma? Não seria tentar sanar a falta de cuidado materno ou paterno que nós temos com um conjunto de ideias, imagens, valores que falam que querem nos salvar? Talvez.
E onde entra Émile Durkhein nessa brincadeira? Ele discorre sobre o conceito de “fato social”, em que ele trata de instituições, normas, valores compartilhados, leis e costumes. Para ele, a instituição “escola”, a “família”, a “religião” se constroem a partir de indivíduos compartilham as mesmas ideias, hierarquias, comportamentos e ideologias.
O que une o grupo por meio desses valores são os símbolos e rituais que reafirmam as crenças.
Já reparou que os cantos de hinos igrejas evangélicas ou os pontos de umbanda narram as histórias e os fundamentos dessa própria fé? O cantar e a música são símbolos e rituais.
Já percebeu que o espaço da igreja evangélica, católica ou do terreiro ou de outros grupos religiosos e a ordem dos eventos ou a decoração na celebração religiosa seguem uma narrativa que faz o fiel lembrar-se dos valores e fundamentos daquele grupo? No fim das contas, são símbolos e rituais.
A procissão, o pular ondas na virada do ano, fazer vigílias, dar as mãos aos fiéis durante a celebração são símbolos e rituais.
Então você está falando que as pessoas estão cheias de traumas e se unem em grupos que pensam da mesma forma para tentar estancar essa ferida aberta por meio de valores que unem à todos? Sim.
Mas ainda temos uma situação mais problemática ainda: quem são esses deuses ou entidades espirituais? Já que o homem projeta nos seres espirituais suas faltas, não seriam os deuses cópias ou transferências da falta dos homens? Se vivemos em sociedade, algumas angústias seriam comuns entre todos.
Nisso, Freud e Durkhein ficam mais claros ainda quando ilustramos as histórias, lendas, entidades e personalidades religiosas.
São inúmeras histórias em que as personagens espirituais:
Comem e bebem.
Fazem sexo, filhos e constituem família ou até mesmo dinastias.
Possuem moradia (casas, palácios, templos ou habitam na natureza).
Fazem parte de uma hierarquia que vai do mais fraco ao mais poderoso.
Trabalham na criação do mundo criam e ordenam as ações de seus “filhos”.
Possuem domínio de um ou mais ofícios (arte, música, guerra, metalurgia, caça, pesca, construção, dominam o clima, poderes espirituais, etc).
Possuem responsabilidades/funções dentro do universo/sociedade divino-terreno.
Pensam, articulam politicamente nos tribunais divinos, cometem erros, mas também acertam em algumas situações e possuem segredos.
Julgam eticamente outros deuses e criaturas terrenas por meio de assembléias ou tribunais nos céus, infernos ou outras regiões.
Possuem sentimentos ruins (Tristeza, medo, hostilidade, frustração, raiva, desespero, culpa, ciúmes) e positivos (felicidade, humor, alegria, amor, gratidão, esperança) e neutra (compaixão, surpresa) em relação à humanidade.
Possuem Emoções: (admiração, adoração, apreciação estética, diversão, ansiedade, temor, estranheza, tédio, calma, confusão, desejo, nojo, dor empática, encantamento, inveja, excitação, medo, horror, interesse, alegria, nostalgia, romance, tristeza, satisfação, desejo sexual, simpatia e triunfo).
Mas respondendo algumas perguntas:
Mas estas características listadas não são próprias do ser humano e fazem parte do nosso cotidiano? Sim.
Se as divindades são reais, elas deixaram algum relato direto, escrito pelas suas próprias mãos? Na maioria dos casos, não. Elas passam seus ensinamentos por meio de intermediários, os homens (que escrevem ou contam suas experiências e que possuem uma visão de mundo e vão reproduzi-la ao contar sua visão espiritual).
Se o homem descreve a divindade do seu ponto de vista, vivência, desejos e valores...será que as divindades possuem as características que o homem diz que elas tem? Provavelmente não, já que são características humanas.
Será que eles [os seres espirituais] realmente possuem esses desejos, ofícios, vontades, segredos de verdade no mundo divino ou o homem que criou uma imagem “divina” que é na verdade terrena de acordo com sua própria visão de mundo? Fica o questionamento para o leitor.
Seriam os deuses construídos “socialmente”? Sim. Talvez alguns nem existam em outros planos. Aqui não faço juízo de valor, nem tenho o intuito de provar nada, mas muitas pessoas jogam pedra porque não aceitam ouvir posicionamentos contrários ou diferentes. O mais legal que a maioria destes fiéis seguidores que podemos analisar pelo viés de Freud e Durkhein, defendem a paz.
Será que reproduzimos nossos valores pessoais na descrição dos deuses? Sim. Nosso contexto de vida (o que passamos no momento, a época, conquistas, perdas, estados de espíritos, leituras, conflitos) determina as palavras e significados que vamos atribuir para práticas cotidianas, para as entidades espirituais ou corpos celestes.