É comum ouvir de alguns torcedores sua rotina em dia de jogos de futebol: Acordei, fiz o sinal da cruz, acendi uma vela, rezei um terço, fiz uma simpatia, coloquei um despacho para o santo, olhei para o escudo do meu time na parede e falei: Bora time!
O futebol é um jogo e fenômeno cultural, extremamente dinâmico e interessante. Em um minuto um time perde um gol, outro faz, ocorre uma virada ou acontece uma defesa milagrosa que entra para a história. Em alguns momentos, o esporte chega a ser cruel. Isso faz o futebol ser uma caixa de surpresas.
Envolvido por místicas e espiritualidade, o esporte das quatro-linhas carrega um ditado popular que diz: “quem não faz, toma”. “O time não faz gol, é punido pelos deuses do futebol”. Isso mexe com a emoção dos torcedores e criam várias narrativas que entrelaçam o futebol e a religiosidade.
Explorando a imaginação da sociedade, imagino as divindades do futebol como Deuses do Olímpo, escolhendo torcidas e clubes para serem felizes e tristes. Alguns times são mais tristes ou felizes que outros por causa do passado.
Deve ser uma escolha difícil determinar clubes que vão perder ou ganhar. São deuses do futebol e sabem o que fazem. Porém, as vezes me pergunto se isso é verdade mesmo. Na cabeça da sociedade, eles devem agir soprando um vento de sua “sala do VAR divina” e mudando os jogos. Mas e se eles forem comprados?
Dia 28 de Outubro de 2023. Final da Copa Conmebol Sul-americana. Estádio Campus de Maldonado, perto de Punta Del Este (URU). O jogo entre Fortaleza Esporte Clube (BRA) e Liga Esportiva Universitária de Quito (EQU) terminou em 1x1 no tempo normal. O jogo foi para os pênaltis e o goleiro do tricolor nordestino defendeu duas cobranças.
Na última cobrança das cinco batidas, estava 3x3 e Pedro Augusto, jogador do Fortaleza, precisava apenas converter e fazer 4 a 3. Ele perde nas alternadas, a LDU faz o gol (4x3) e o zagueiro tricolor Brites perde. Assim, o time equatoriano fica com a taça.
Muitos torcedores pensaram: Por que o Fortaleza não ganhou aquele jogo Eles ficaram 10 anos na Série C, foram para a série B e estavam fazendo um ótimo trabalho. Qual o posicionamento dos Deuses do Futebol? Foi acaso? Incompetência? Punição divina por qual pecado?
Dia 4 de Outubro de 2023. Semifinal da Copa Conmebol Libertadores de América. Estádio Beira Rio, Porto Alegre (RS). O Internacional (RS) abriu o placar e estava se classificando para a final. O jogador do Colorado Enner Valencia perdeu três gols claros e a chance de matar o jogo. Os deuses do futebol puniram o Inter com 2 gols do Fluminense (RJ) em 6 minutos e a eliminação na final. Para os cariocas, os Deuses foram grandes amigos. Foi religioso ou só descuido que veio transvestido de narrativa divina?
Provavelmente foram os Deuses do Futebol que levantaram a perna de Victor, goleiro do Atlético Mineiro, no pênalti contra o Tijuana (MEX), na Copa Libertadores de 2013, nas quartas-de-final. Ele virou até santo depois desse jogo. Foi um milagre para os atleticanos. Ou foi sorte? Ou foi apenas ação humana? Consistência no trabalho da gestão do clube?
Para outros, foram eles que cortaram a luz, junto com o presidente Alexandre Kalil, do Estádio Independência (MG) contra o News Old Boys (ARG). Isso permitiu uma pausa e em seguida levaram o time preto e branco a uma virada histórica e a vaga na final. Os Deuses também sopraram um vento que fez a bola de Giménez pegar na trave e levar o Atlético Mineiro ao título de Campeão da Libertadores em 2013. Não seria sorte ou erro do time do Olímpia (PAR)?
Por mais que acho interessante a ação das divindades das quatro-linhas, nem sempre minha relação com os Deuses do Futebol foi boa. Tivemos várias tragédias e eles não fizeram nada para impedir. E se eles forem os responsáveis por tudo isso? E se os humanos forem responsáveis por tudo que aconteceu no futebol?
Toda vez isso gera raiva, ódio, ressentimento em torcedores até hoje. É possível explicar a violência e rivalidade pelo Brasil por causa das tragédias no futebol. Em alguns casos não são apenas jogos. Alguns torcedores morreram, outros odeiam vários times e até deixaram de torcer por seus próprios clubes. Vejamos exemplos:
Temos a defesa milagrosa do goleiro Danilo na Arena Condá (SC) em 2016. Lembro do narrador da Fox Sports falando que o “Espírito de Condá”, um indígena que tem ligação com o clube, ajudou o goleiro. A Chapecoense, de Santa Catarina, assegurou a vaga na Sul-americana de 2016 de forma quase milagrosa. Infelizmente houve um acidente com o clube que parou o mundo momentos depois.
Onde estavam os deuses do futebol para permitir que aquela bola entrasse e o avião da equipe não caísse dias depois porque o time estaria desclassificado? Eu era um adolescente quando o acidente aconteceu. Naquele ano vi aquele time que morreu jogar contra o Atlético Mineiro no Mineirão. Nunca imaginaria que todos os 71 indivíduos morreriam. Não houve nenhum descuido ou falha humana no trato com o avião?
Será que os deuses do futebol se arrependeram de deixarem aquele avião cair? Falo isso porque não foi a primeira vez que uma agremiação morre no ar.
Onde eles estavam quando, em setembro de 1969, a aeronave que transportava o elenco da equipe boliviana The Strongest, de Santa Cruz de la Sierra para La Paz, caiu na cidade de Viloco, na Cordilheira dos Andes, já próximo ao destino, deixando 74 mortos?
O que os Deuses do Futebol queriam nos ensinar quando a Thomas Muller fez o primeiro gol aos 11 minutos naquele 7x1 em 2014 no Estádio Mineirão? E quando tomamos os outros seis gols de Miroslav Klose (23 minutos), Toni Kroos (24' e 26 minutos), Sami Khedira (29 minutos), André Schürrle (69' e 79 minutos), o que era para aprender? Nunca disseram (apenas Galvão Bueno).
Alguns disseram: precisava tomar uma goleada de 7 gols para punir os fatos da história brasileira desde 1500? Outros afirmaram estávamos despreparados taticamente (esportivamente, socialmente, economicamente, psicologicamente, politicamente) e aquela semifinal só mostrou o que estava maquiado no Brasil por um todo além das quatro-linhas.
E quando tomamos a virada do Uruguai (2x1) em pleno Estádio Maracanã (RJ), em 1950. Por quê? Ficamos em silêncio e em luto por muito tempo depois daquela Copa do Mundo porque estávamos invictos. Será que foi uma falha nossa “cantar vitória” antes da hora ou punição real? Foi desprezo de nossa parte?
E quando Márcio Rezende Freitas deixou de marcar o pênalti sobre Tinga, do Internacional (RS), no jogo contra o Corinthians (SP) em 2006 no Pacaembu (SP), onde estavam as divindades? Por que não interferiram de forma justa em favor dos sulistas? Seriam os Deuses do futebol o próprio sistema que controla o esporte no Brasil?
E onde eles estavam no jogo entre Atlético-MG e Flamengo (RJ) no dia 21 de agosto de 1981, no estádio Serra Dourada, pela Copa Libertadores? Aquele jogo nunca acabou ou terminou antes do esperado, já que o árbitro José Roberto Wright expulsou quase metade do time preto e branco e garantiu a vaga dos flamenguistas para as fases finais da Conmebol Libertadores. Por que não impediram esse fato? Seriam eles o tal do Sistema?
Pior, onde estavam os Deuses do Futebol quando o Clube Regatas Vasco da Gama (RJ) roubou o Cruzeiro Esporte Clube (MG) no Estádio Maracanã (RJ) em 1974 por meio da anulação de um gol que foi legal. E quando o time celeste perdeu a Copa Libertadores em pleno Estádio Mineirão após a bola do volante Henrique bater na trave e não entrar? Por que não interferiram nas partidas?
Onde eles, os Deuses do Futebol, estavam quando o Corinthians foi assaltado pelo Boca Juniors (ARG) em pleno Estádio Pacaembu (SP), em 2013 e o Santos de Pelé foi prejudicado em 1964, pela Copa Conmebol Libertadores? E se eles forem o Sistema que controla tudo?
Onde eles estavam quando em 2014 torcedores gremistas chamaram o goleiro Aranha de macaco, na vitória do Santos por 2x0, na Arena do Grêmio? E quando uma parte da Arena Fonte Nova caiu em 2005 e dezenas de pessoas ficaram feridas e 7 morreram? Eles estavam dormindo? Não havia nada para impedir o que aconteceu? Um laudo do Corpo de Bombeiros ignorado?
Qual o posicionamento deles quando vários torcedores brasileiros são chamados de macacos por torcidas argentinas? Sem contar quando foram agredidos e mortos. Onde eles estão quando mulheres, homossexuais são hostilizados e até agredidos em estádios?
Parece que para esses problemas sociais alguns dos Deuses estão com os olhos fechados e só se preocupam com o fato de que nas competições Sul-americanas os torcedores não podem balançar bandeiras ou usar sinalizadores.
E quando torcedores organizados e “comuns” brigam nas arquibancadas? E quando construíram vários estádios no Brasil, aumentaram os ingressos e tiraram a população mais pobre do lazer após a Copa de 2014? Por onde ficou a magia do futebol? Talvez os Deuses tenham feito isso de propósito.
Fico me perguntando se os Deuses do Futebol são parciais. Fico pensando se eles agem apenas para alguns ou tiram férias (e nos momentos de férias que as tragédias acontecem). E se eles receberem propina para interferir nas partidas? Será que quem paga melhor consegue o favor deles? Mas se são deuses, não eram para ser movidos pela fé humana?
Não acredito que os Deuses do Futebol sejam como os deuses religiosos ligados ao cristianismo, espiritismo, budismo ou religiões famosas. Esse texto também não é um ódio contra a religião disfarçada pela grama do estádio.
Nunca obtive respostas sobre eles ou porque de suas ações. Até me pergunto se os Deuses do futebol de fato existem ou é tudo invenção humana de um “espírito divino” do futebol que faz os torcedores se apegarem a forças espirituais, rituais e crenças. Talvez as duas opções estejam certas.
Enquanto isso, apenas espero que as forças ou instituições que regem o futebol sejam justas ou pelo menos deem aos homens que tomam conta do esporte, um coração honesto, humanidade e sensibilidade.
Que vença o melhor. No caso, o melhor na bola e não na nota [de dinheiro].
Enquanto isso, os torcedores continuam rezando, acendendo velas, realizando simpatias e fazendo promessas para seus times. Isso acontece porque a espiritualidade se une ao futebol.
Faz parte do cotidiano brasileiro e é algo extremamente interessante de se estudar.