Eis me aqui, novamente, falando para vocês sobre um filme que me marcou, aliás como não sair marcado deste filme, eu sai chorando, ruminando tudo o que acabava de assistir, não conseguia nem conversar direito, precisava refletir! A reflexão foi tão necessária que estou escrevendo sobre o filme semanas depois e tê-lo assistido.
O Som da Liberdade, dirigido por Alejandro Gómez Monteverde, lançado em outubro de 2023, tem sua história baseada em fatos reais.
Tim Ballard, personagem interpretado por Jim Caviezel, é um homem real que lutou contra o tráfico infantil. Tim Ballard é um agente federal que trabalha na investigação de casos de pedofilia nos EUA, ele participa de toda a operação até a prisão dos pedofilos que estão investigando.
A trama gira em torno do resgate de Rocío, interpretada por Cristal Aparíci. Tim se identifica com Roberto, interpretado por José Zuniga, pai de Rocío. Roberto é pai solo e teve o casal de filhos raptados por uma suposta agência de modelos infantil. Tim resgata o filho mais novo de Roberto e descobre em uma conversa com a criança que sua irmã mais velha havia sido raptada junto com ele, mas eles foram separados pouco tempo depois e o menino não sabia onde estava a irmã.
O reencontro de pai e filho é acompanhado por Tim, é quando ele conhece Roberto, em um determinado momento eles conversam e Roberto pergunta ao agente federal se ele conseguiria dormir vendo a cama de sua filha vazia todos os dias, afinal, Rocío ainda estava desaparecida. Tim Ballard é pai e uma de suas filhas tem a mesma idade da menina raptada, ele se sensibiliza com as palavras deste pai, ele se identifica com o sofrimento deste outro homem.
Eis a transferência de amor. Tim é movido pelo amor, foi a sua identificação com amor de um pai por seus filhos que o colocou em movimento, que o fez conversar com seu superior para que neste momento ele trabalhasse com o resgate das crianças, para investigar o paradeiro de Rocío.
No seminário A ética da psicanálise, Lacan1 nos fala sobre a ética de Antígona em não ceder de seu desejo mesmo sendo condenada à morte por realizá-lo. Antígona é irmã de Polinice, a quem foi negado por ordens do rei Creonte, as honrarias tradicionais dos funerais por ter lutado contra sua pátria e aquele que desobedecesse as ordens do rei estaria condenado à morte. Antígona não aceitou as ordens de seu Tio Creonte, pois acreditava que os rituais de passagens eram importantem para que a alma não ficasse vagando sem destino, com isso, ela se coloca diante da morte, ela não cede diante do seu desejo e faz os ritos fúnebres ao seu irmão e é condenada a morte.
Tim está no lugar de Antígona quando pede demissão de seu emprego ao ser mandado retornar da Colômbia e abandonar a investigação. Ele se coloca diante de diversos perigos, inclusive a morte, para conseguir resgatar as crianças. Tim Ballard é Antígona em seu desejo decidido, em não ceder diante de seu desejo, desejo este que surge pela transferência. E o que é a transferência se não amor? É o amor que move o personagem, é o amor de Roberto por seus dois filhos que faz Tim se identificar e se comprometer no resgate de Rocío.
Tim permaneceu na Colômbia até o final das investigações da rede de traficantes que estavam ligados ao rapto de Rocío e seu irmão e com isso foram resgatadas mais de cem crianças. É importante destacar que Tim teve o apoio de sua esposa durante todo o tempo, é ela quem pede que o marido não retorne sem Rocío. Ao final da exibição do filme, Jim Caviezel deixa uma mensagem e nos conta que o filme estava produzido a cinco anos e foi impedido de ser lançado anteriormente por uma série de obstáculos, até que recentemente um grupo de pessoas (cujos nomes aparece na tela enquanto ele fala) conseguiram fazer com que o filme fosse aos cinemas.
O som da liberdade da voz a milhares de pessoas que vivem esta realidade e que são impedidas de ter voz, impedidas de viver as vidas que desejavam. Que este filme nos movimente a olhar para esta realidade que nos é tão próxima, para que as pessoas não sejam mais comercializadas como objetos, para que as camas não fiquem mais vazias, para que as Rocíos possam retornar aos seus lares, as suas vidas.
Notas
1 Lacan, J. O Seminário: a ética da psicanálise (1959-1960). Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988. livro 7.
1 Lacan, J. (1960-1961) O Seminário: livro 8. A transferência. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.