Partiu, sem cálculo e com quase nada que não ele.
Por um acaso, que sempre é ocasião, partiu em dia litúrgico católico de ascensão. A teologia, que estudara, aponta, neste mistério, para a ideia de se ser assumido, sem mérito pessoal, por puro dom gratuito e generoso de Alguém. A verdade é que também leu deste prisma a sua ascensão. Não subiu por ímpeto ou calculada programação. Se é verdade que experimentou desejo e decisão da vontade, também sentiu apelo.
No sonho, aquilo porque vamos, principiou a subida. O sonho eclodiu como imperativo de consciência e como necessidade fisiologicamente sentida. Presidiu-lhe a ideia de se encontrar com quem é, distante donde está e tenta ser, tentando guardar no coração apenas quem/o que importa. E daqui, com ‘isto’, subir até onde o céu parece não ser limite. Tudo o que lhe apareceu, pareceu-se com oportunidade ‘kairológica’ a agarrar agora. Assim o fez. E o feito entusiasmou-o.
Na montanha esconde-se o apelo visível e outros velados, a reclamar descoberta. Ela fala-lhe numa linguagem que lhe parece parecer-se com a sua. Rebuscada, silenciosa, óbvia, excessiva… Reclama hermenêutica, que surge límpida na decifração, assim intui, mas significativamente opaca e lentificada na operacionalização. Assim, o apelo apenas existe para um sujeito que o reconheça como tal. Ele, no caso. Sem se importar ser inconsciência, loucura, escândalo talvez. Portanto, aquele instante de tempo é para si, é seu, do modo próprio como ele quer que seja. Responde afirmativamente e parte sozinho. Deve a si mesmo, pelo menos, a tentativa de defrontar a montanha, defrontando-se consigo, com as sombras que pesam, com as luminosidades que deseja que iluminem mais.
A subir, sente-se solidão árida, esvaziado, esvaído pelo cansaço. Não sente um algo, como se fosse um acrescento ao corpo e ao que é. Sente-se, experimenta-se a si mesmo assim. Sente que é aquilo. Pelo menos naquele instante. Parece-se oco, vão, derrotado pela fadiga, obstruído no discernimento, incapacitado no pensar. A espaços, pensa-se imerso num sofrimento por sofrimento, sem sentido, objetivo ou réstia de possibilidade de aprendizagem. E a desistência é, uma vez mais, hipótese. Pensa, numa continuidade aflitiva, porque é que tudo tem de ser em função de um fim. Porque é que as coisas não podem ser apenas elas mesmas, valendo pelo que são. E sossega-se, sem se deixar de inquietar.
A subir, também se lê e vive como solidão habitada. Por aqueles (quase nenhuns) que sabem que ali está, por aqueles a quem se partilha, óbvios, inusitados e surpreendentes. Por aqueles a quem se quis dizer e não disse, por temor, respeito, vergonha até. Pelos momentos que afloraram e pelos que desejou voluntariamente reler, pondo distância e luz, no êxtase de felicidade e no sofrimento sangrante. E a subida crescia, adensava-se e entranhava-se em todos os tecidos do seu corpo.
O jantar, solitário e solidário com os simples, feito de fome cansada, mas de essencial, aconteceu em cenário que suspende a respiração e relativiza toda a pequenez que consome demasiado tempo. O Criador foi mais meticuloso e demorado em alguns lugares e aspetos da criação. Mesmo. Ali também.
De súbito, a noite abateu-se sobre si. E escureceu dentro. Este cardápio trouxe medo, duvidador, paralisante, semeador de inquietude. Regressar ao ponto zero não constituía opção. Na verdade, não há ponto zero. O feito não se apaga. Mas parar e quedar-se onde estava equivaleria a regredir, num conformismo que poderia ser lucidez sensata, mas era o conforto possível e a derrota num confronto com o desafio de subir.
Percorreu uma derradeira hora sem luz, a ver nenhuma referência ou sentido, polvilhado apenas de intuitivos lampejos interiores, sustentados somente no desejo de que tudo corresse bem e num qualquer resto de forças que não descortinou com clareza onde guardara. Mas que apareceram de nenhures. Subiu. Parou. Voltou a parar. Voltou a subir. Confiou. Entregou-se.
Sobretudo nessa hora final interminável e na descida, sentiu o perigo na carne. A sua mente vagueava entre a impreparada perícia e a inconsciência de não ter antecipado todas as variáveis. Em diversos instantes pensou como o encontrariam se algo lhe acontecesse. Se o encontrariam. O que diriam se já nada dissesse. Enredou-se, nesse tempo que pareceu mais longo que o que foi, em perguntas sem resposta. Ocorreu-lhe que a bondade predominava em si. E isso seria bastante para ser. E para subir e descer. Também a mãe, preocupação e peso, dom e bênção. E o que deixara escrito e dera a ler e que, mesmo sem aceitação, lhe tinha pacificado o coração. E a sua resposta foi subir, sem outra meta que não a do desejo de se encontrar a si e vencer o lado lunar do que era. E desfrutar do percurso que era o dentro.
Subiu frágil, com o mínimo, com quase nada. Consigo, o que, não em poucos momentos, é peso bastante e gente demais. Tudo isso foi sempre suficiente, a pender para o excessivo. Alturas houve em que lhe apeteceu esvaziar-se até ao limite de si, para naturalmente se encher do jeito certo. Ir ao zero do que é, porque sem aparente vislumbre de bondade, para exercitar um novo recomeço dos escombros em que se emaranhou. Mas a sua razão e vontade não são livres e transparentes quanto baste para o desapego total. O turbilhão é intenso e efervescente e os (poucos) apegos são vínculos de raiz funda. Sobretudo os que se querem desapegar de si. Outros há ainda que, como erva daninha, com teimosia e maldade, não lhe concedem a liberdade que deseja e crê merecer. Mas subiu também com os seus lampejos de beleza e bondade, que foram alavancando o percurso.
Na ditadura do sucesso e da felicidade, quis recuperar o lugar equilibrado e equilibrador da fragilidade e do pouco. Não para ficar aí, mas para isso o tornar mais ele, verdadeiro apesar de tudo, com consciência da parcialidade que é. Quis ser, por uns instantes que fosse, mais próximo dos últimos, percebendo o peso da solidão e querendo descobrir aí o afloramento das presenças que importam e fazem diferença. A aridez e o cansaço não deixavam perceber clareza ao raciocínio. Apesar disso, acreditou que tudo o que estava a viver se entranhava nele, por bem. E o ajudaria no surgimento da novidade por dentro de si, a que tanto aspira. Talvez não para ser muito diferente, mas para ter coragem decisória para deixar de ser o que não é.
A pequenez titubeante que experimentou contrastou sempre com a grandiosidade da realidade circunstante, que contemplava. E, aí, situou-se no paradoxo e na fronteira. Parte e dispensável, importante e acessório, belo e feio, determinado e incapaz, assertivo e diletante, vigoroso e deambulante, cómodo e desconfortável. (N)a fronteira, no fim de contas e no resto de tudo, o lugar onde gosta de estar e ser. E para onde se joga, quando o seu pé não a pisa por demasiado tempo. Para se sentir vivo.
Reconhece aí a metáfora de quem é. Na fronteira de algo. A desejar ser, a sonhar ser, a imaginar como será, a desenhar possibilidades. Mas apenas e só a ir sendo. Num provisório feito de insatisfação, que, a espaços, desafia e, a espaços, refreia, numa espiral feita de inconstância, que não o deixa ser quem quer e é. Muito menos, com quem quer ser. Ser querido, talvez seja isso o projeto de vida, que se converte em limite sempre que não se quer a si mesmo.
Para tentar alcançar, com o olhar, mas com a inteireza do corpo, o que possa estar do lado de lá, prosseguiu, grávido de perguntas que – confessa – lutou para que não nascessem. Em escombros e reconstruções quase permanentes e sequenciais. Com a mesma facilidade no início e no fim. Com dificuldade em tornar vida e carne o verbo manter. Essa é sempre a chave, que dói e de cuja dor ecoam os sintomas de desistência. Fez da subida resistência, que disfarçou de uma coragem que não tem. Teimosia, rotulada, para seu conforto, de resiliência.
(Re)descobriu-se a subir rumo ao estranho. Desde o estranho exterior percebeu estranhezas que o habitam e lhe revelam quem é. Este encontro tem muito de beleza, com sintomas de vergonha e pedaços de inquietude, revolta e conversão. Pelo menos, na forma de desejo, que promete a si mesmo persistir sem desistir. Quer dar luta ao que não o deixa ser. Às partes de si que teimam em ser menos ou não ser de todo. E vencer, numa vitória efetiva, para lá de moral, real, para lá de sonhada.
Subiu, numa intempestividade pensada, porque se vivia asfixiado no cansaço do mesmo. Sem espaço para o grito, porque, na justa verdade, essa mesmidade não dava razões de queixa. Mas não o satisfazia. Ou só a espaços, talvez. Como tudo, na realidade. Porque será que sabemos da evidência indubitável da não plenitude e não perenidade da onda, mas, ainda assim, aspiramos a isso, numa teimosia que contradiz a inteligência e frustra a vontade? Somos feitos de eternos e para a eternidade, assim parece.
Está consciente que, provavelmente, descerá de regresso ao mesmo. Por pragmatismo, pouca coragem, necessidade, realismo… Talvez porque se convenceu que essa é a escolha melhor. Certa, ao certo, não sabe. Espera(-o) um mesmo melhor. Espera, crê, deseja. Tem esperança que a memória do estranho o (re)alimente de novo. Na realidade e no desejo, tão eternamente quanto a (sua) humanidade for capaz de o viver. Desceu, como tinha de ser, porque tinha de ser. Mas porque quis, porque viu aí sentido. E isso, ao certo, sabe.