Cansado deste tempo é uma colectânea de poesia da autoria de Rei do Gado, pseudónimo de Célio Ouana, que reúne mais de 30 poemas escritos entre 2008 e 2021. Com as mais vastas estruturas poéticas, versos e estruturas livres, Rei do Gado explora temáticas como a eternidade, a solidão, a negritude, a pobreza absoluta, não se escusando de se debruçar, igualmente, sobre o amor, numa perspectiva mais astuta.

Não deixa de frisar, através do poema que dá título à colectânea, as peripécias deste tempo que, de forma atemporal, se vislumbra até aos dias que correm. Trata-se de uma colectânea de poemas bem conseguidos e ousadamente cobertos de uma linguagem que oscila entre a elaborada e despudorada, mas, a cada um, moçambicanamente trinchada. Traduz uma qualidade estético-literária que, sem sombra de dúvidas, intima todo e qualquer leitor a contemplá-la.

Entre a rima perfeita – quanto à fonética – (aquela na qual há correspondência total dos sons, a partir da última vogal tónica e repetição tanto de sons vocálicos como dos consonantais) tal como se pode depreender no poema Mortalidade:

A mortalidade, / esta incrível realidade/ por muitos de nós temida/ tão por muito poucos querida/ é uma fatalidade infalível/ definitivamente indestrutível/ de todo o ser que tem vida.

(Rei do Gado, 2022:8)

A rima emparelhada (AABB) (tal como se pode vislumbrar em Maputo:)

Centro de todas as atenções/ motivo de todas as emoções/ cobre-te uma inefável mistura racial/ que nos torna iguais ou diferentes/ cidade aponquentadamente poluída/ por gentes de todas as raças/ vindas desta e de outras praças/ deste teu e nosso Moçambique (...)

(Rei do Gado, 2022:13)

E a rima cruzada (ABAB) (tal como se pode inferir na segunda estrofe do poema Solidão:)

(...) Tiraste cores à minha vida/ ofereceste-me trevas e desespero./ Agora clamo pela tua partida/ Quero sobreviver a este inferno áspero.

(Rei do Gado 2022:9)

Aliado à antítese e trocadilho, patentes no poema que dá título à coletânea (Cansado deste Tempo, p.10), o sujeito poético procura exprimir o aborrecimento que sente relativamente a um determinado período (de globalização, modernização), período esse em que a sua outrora gente – acrescente-se o termo outrora – tem a mente embriagada pela absorção excessiva, crise de identidade e acção passiva e, acrescente-se, refugia-se na gente da sua nação, que exalta a sua moçambicanidade.

Como se pode depreender a partir das pequenas nuances que se avançaram nos parágrafos anteriores, com a coletânea 'cansado' (de aborrecido, gasto) 'deste' (pronome demonstrativo) 'tempo' (época determinada, estação, série ininterrupta de instantes), o autor pretende denunciar (i) a desigualdade (daí os títulos bem conseguidos como Pobreza Absoluta) (p.16), Progresso Regressivo (p.24); (ii) a inutilidade que a vida nos reserva (ou o tempo? – daí os poemas Em Coma) (p.29), O Inútil (p.30); denuncia, igualmente, (iii) a esperança, ancorada na nossa moçambicanidade, nos ritos e cerimónias (como mhambas), em poemas como Chuva Miúda (p.20) e Chuva Forasteira (p.21) e, só para vincar a moçambicanidade, serve-se, o autor, do manancial linguístico moçambicano para fazer dele ornato da sua produção poética, refiro-me a termos como kokwana e mhamba; khanimambus e mikulungwanas e, por que não de bacela a própria bacela?

Em jeito de bónus, Rei do Gado institui-nos um sujeito poético que ainda nos chama a reflectir sobre a resiliência de moçambicanos como Samora Machel, Carlos Cardoso e Siba-Siba Macuácua que, para a firmarem, tiveram que hipotecar a vida, isso em Morte pela Verdade (p.11).

Corrales (s/d), no seu artigo intitulado "A intertextualidade e suas origens", defende que falar de intertexto e de Literatura Comparada exige perceber que, ao lermos um texto (A), estamos a ler um texto (B) e este entrecruzamento de vozes percebidas ou levemente transparentes é algo que perpassa a escrita, em especial a literatura, ao longo de todos os tempos.

Ora, Rei do Gado fez bom uso desta técnica: serviu-se da citação, no poema Palavras (2) (p.18) – e da alusão, no poema Palavras (1) (p.17), por sinal o objecto do escritor, para: traduzir (quem sabe?!) a sua admiração por Mia Couto, mas, acima de tudo, uma das marcas dos escritos deste: a "brincriação" de e com as palavras, quando diz:

Inventemos palavras/ palavras novas, sempre novas/ inventemo-las bem inventadas/ como faz com sabedoria elitista/ o nosso consagrado romancista/ Khanimambu, Mia Couto!/ Khanimambo, Mia Couto!

(Rei do Gado, 2022:18)

Fá-lo, igualmente, para traduzir a "semantificação" que caracteriza os escritos de Calane da Silva, quando diz:

Inventemos palavras/ não famintas de significado/ nem de fonemas nem morfemas. / Inventemo-las gordas de sentido/ que brilhe brilhantemente o sol/ para a "manifestação da palavra"/ Khanimambu, Calane da Silva! / Khanimambu, Calane da Silva!

(Rei do Gado, 2022:18)

E o mesmo o faz para com Rui Knofli. Sem sombra de dúvidas, Cansado deste tempo é um livro para dizer: se o acha bom, recomende aos seus amigos, se o acha mau, aos seus inimigos.

Portanto, estamos perante prova viva de que, entre a mestria, ousadia e audácia, Rei do Gado institui, na sua coletânea de poesia, sujeitos poéticos que, numa linguagem moçambicanamente trinchada e não só, denunciam as peripécias deste tempo que, de forma atemporal, se vislumbra até aos dias que correm e convida-nos não só a reflectir sobre as temáticas resumidas neste "textículo", mas, por que não igualmente sobre o negro?, muito exaltado por Craveirinha e De Sousa; por que não sobre o drama dos chapa-100? Por que não ainda sobre o conceito de espaço físico-social discutido por Carlos Reis e Ana Cristina Lopes e Victor Manuel de Aguiar e Silva? E sobre amor na perspectiva de um poeta-mor encarnado que, para além da astúcia, mostra uma sensibilidade a este tão simplesmente mal necessário?

Bibliografia

Do Gado, Rei. (2022). Cansado deste Tempo. Maputo: Kuvaninga – Cartão d'Arte.