Miguel Real recebeu em 20 de outubro deste ano, no Porto, o Prémio da Matriz Portuguesa - Cultura e Conhecimento. Foi a 1ª edição do prémio cuja designação já enuncia o seu objectivo estatutário: distinguir alguém cuja obra se evidencie pela reflexão sobre essa ‘matriz’ que na língua portuguesa e no seu imaginário se embebe numa longa e diversificada diáspora de encontros culturais.

De facto, Miguel Real tem cartografado a cultura portuguesa, em particular, e as culturas lusófonas, em geral, combinando ensaísmo e ficção, ‘grandes angulares’ perspécticas e ‘focais’ sectoriais, incluindo personalidades (Pe António Vieira, Eduardo Lourenço, etc.) e temas do maior relevo (as Novas Teorias), numa trajectória que, passando, também, pelo ensino, pela crítica e pela intervenção cívica, vai ao encontro do projecto do Prémio Matriz Portuguesa (v. Regulamento).

As homenagens que lhe foram feitas pelas 4 décadas da sua vida literária e culminaram com a edição de um livro marcante que tive a hora e o prazer de organizar com Carla Sofia Xavier Luís e Alexandre Luís (Miguel Real – 40 anos de Escrita: Literatura, Filosofia e Cultura, 2021) dizem da sua presença marcante na cultura portuguesa.

Não vou, pois, falar aqui sobre a obra do autor, mas vou apenas partilhar um depoimento para uma secção (“Escrever com Miguel Real”) que, por lapso, não foi incluído no volume-alvo, perdido entre tantas colaborações. Nele, assinalo modalidades de um estimulante diálogo. Afinal, todos os que fazemos das letras a nossa vida, vamos tecendo estas malhas na vasta tapeçaria de uma colectiva Penélope… aqui segue um fragmento dela resgatado ao labirinto e-mailico.

Escrever com… Miguel Real

Escrever ‘com’… três letras, três modalidades: com prefácio de Miguel Real, prefaciando Miguel Real e a duas mãos (ou quatro, no computador). Deixo de lado experiências afins: a colaboração em obras colectivas, autónoma, sem comunicação de parte a parte, ou a de coordenação de obras, erguendo um edifício coeso a partir de colaboração diversa (pela autoria, matérias, perspectivas)…

Qualquer das modalidades indicadas supõe a presença fantasmática do outro, imaginado diante de nós, o desconhecimento do que se segue e a expectativa da letra seguinte. Também implicam a surpresa face ao que do outro nos vem e a ansiedade pela opinião dele. Há, porém, uma diferença abissal entre as primeiras modalidades e a última: naquelas, cada autor surge na integridade do seu perfil, apesar da incompletude deste (cuja face visível oculta a outra), num diálogo encenado em livro, que torna simultâneo o sucessivo; nesta última, os perfis confundem-se no discurso fusional sem autoria diferenciada.

Nestes anos de colaboração e de cumplicidade intelectual e existencial, tive o privilégio de experimentar as três modalidades com Miguel Real.

Prefaciada por Miguel Real1

O pedido foi sempre tímido e ansioso e a resposta afectuosa e emocionada. E foi sempre com surpresa e gratificação que recebi o seu texto iluminador na ‘volta do correio’: leitura sempre de aguda perscrutação, sensível e evidenciadora de aspectos que, por vezes, eu mantinha subtilizados na reflexão, escamoteados nas dobras da análise, sombreados pela informação convocada, pela intensidade do foco analítico ou pela amplificação do zoom. Miguel Real dissipava as sombras, enquadrava e representava à distância adequada o meu trabalho, fazendo a hermenêutica da letra e da abordagem, da génese e do desenvolvimento, das coordenadas reflexivas. Reconheci-me e surpreendi-me sempre nessa representação que me outrava pela definição e pela explicação.

Prefaciando Miguel Real

O pedido emocionou-me sempre pela modéstia de Miguel Real e pelo seu apreço científico e intelectual por mim. Quando, por e-mail ou em papel, me chegava a obra (algumas delas estão ainda inéditas), a emoção dobrava-se com a surpresa: temas e matérias consabidas erguiam-se numa arquitectura sistémica, num edifício com nexos e articulações iluminadoras das singularidades, das (dis)semelhanças, das relações dialógicas, da evolução reflexiva, numa cartografia das ideias e das obras. Essa paisagem sistematizadora fazia ver de outro modo o conhecido, re-arrumava-o evidenciando a linha temporal (transformação, história, relação) e a estrutural. Narrativizava as imagens tradicionalmente sincopadas (por autores, obras e ideias), relacionando-as de modo a salientar a aventura do (seu) (re)conhecimento, correspondendo ao princípio defendido por Gregory Bateson (Mind and Nature, 1979), segundo o qual todo o conhecimento, em súmula e em processo, é relacional…

Escrevendo a quatro mãos…

O convite veio da Imprensa Nacional - Casa da Moeda: escrevermos O essencial sobre Teolinda Gersão durante o ciclo de homenagem à autora pelos seus 40 anos de escrita literária e pelos 80 anos de vida. Celebração e homenagem coordenadas pelo Miguel Real e por mim num programa internacional e multímodo de dezenas de iniciativas realizadas pelo mundo, entre exposições, concertos, colóquios, edições, etc., muitas delas divulgadas no site. O essencial… ele aí está, a vermelho e negro (não stendhalianos), com espelho simbólico, entrando-me em pacote enviado pela editora.

Na cumplicidade que nos une e que se aprofundara no projecto do ciclo de homenagem, resolvemos que um começava com certos textos do corpus da autora e que o outro continuava com outros, entrelineando notas, na leitura recíproca. Os fragmentos encaixaram-se harmoniosamente, emergindo o texto da dança do verbo voluptuoso, sensível, ritmado pelo diálogo e pela música em diferência, música de cada universo ficcional, música de cada um de nós, música ‘das esferas’… da escrita celebrada e celebratória. No final, cada um de nós se surpreendeu por não conseguir reconhecer os momentos da sua intervenção, as articulações que ensaiara, o seu ‘grão da voz’, nem os do outro… o discurso era polifónico, entre um timbre oscilante com pontual identidade analítica e o da nossa autora. Surpreendente metamorfose fusional…

Enfim, que o futuro favoreça a continuação da escrita com Miguel Real, integrando-a na dança de vida, não com o tónus depressivo de Munch (A Dança da Vida, 1899), mas com o deslumbramento do conhecimento de Edward T. Hall (The Dance of Life, 1983)! Bem hajas, Miguel, por tão bem dançares e me levares! E felicitações pela obra notável que tens realizado!

Referências

1 Eça de Queirós Cronista (2ª ed., 2017); Perfis & Molduras, 2019; Do que não existe. Repensando o Cânone Literário (2018); Novas Breves & Longas no País das Maravilhas (ebook, 2018); Perfis & Molduras no Cânone Literário (2018); Teolinda Gersão: encenações (2020).