O ensino em qualquer parte do mundo é tutelado por um órgão máximo. Para o caso de Moçambique, pelo Ministério de Educação e Desenvolvimento Humano (MEDH), o qual é responsável pela produção de políticas e orientações que regem o processo de ensino-aprendizagem e, consequentemente, contribuem para o desenvolvimento humano.
O que se depreende do ensino de literatura em Moçambique é que este se apresenta deficitário e incoerente, concretamente no Ensino Secundário Geral. Isto, por conseguinte, se repercute no ensino superior, onde os conhecimentos de cunho literário são exigidos com certa rigidez, dado à natureza dos cursos ministrados nas universidades.
Pelo que, com esta pesquisa, sem subvalorar a preservação do património cultural e a construção da identidade nacional previstos no PCESG, pretendo dissertar sobre o ensino do texto literário nas aulas de língua portuguesa, pois que nelas se verifica maior privilégio ao ensino de gramática em detrimento do ensino de literatura.
Para De Oliveira (2002), a linguagem constitui-se como o mais eficiente sistema simbólico de representação da realidade, exercendo a função mediadora entre o Homem e o meio, dando suporte para a acção humana. Ademais, segundo este autor, a linguagem realiza a função mediadora entre o sujeito e o objecto do conhecimento.
Essa capacidade de lidar com representações que substituem o próprio real é que possibilita ao Homem libertar-se do espaço e do tempo presentes, fazer relações mentais na ausência das próprias coisas, imaginar, fazer planos e ter intenções.
(De Oliveira, 2002)
Ora, privilegiando-se a gramática em detrimento de textos literários nas aulas de língua portuguesa, o professor estaria a fomentar as competências linguística e comunicativa nos alunos? Estar-se-ia, igualmente, a trabalhar o objecto principal do ensino de língua portuguesa: a linguagem nas suas diversas modalidades? Da Silva e Abud (2011) ressalvam que a mediação entre o aluno e o conteúdo se efectiva nas estratégias utilizadas pelo professor. De igual modo, as estratégias didácticas, de aprendizagem e de ensino, ou seja, as actividades pelas quais se realizam os objectivos, evidenciam a função mediadora do professor.
O ensino de literatura no SNE: perspectivas e enfoques
Antes de se avançar à análise deste fenómeno, importa trazer à ribalta o que os documentos formais prevêem sobre a literatura nas aulas de língua portuguesa.
O documento sobre Orientações e Tarefas Escolares Obrigatórias (OTEO) estabelece um conjunto de círculos de interesse e actividades a desenvolver, no domínio da preservação do património cultural, nomeadamente: Fotografia e Cinema, Artesanato, Artes Plásticas, Literatura, Escultura, Música e Dança.
(MINED e INDE, 2007)
Ou seja, existe orientação para as actividades a se desenvolverem, das quais a literatura faz parte. Acrescente-se:
Assim, os alunos deverão ser encorajados a aderir aos círculos de interesse, a desenhar os seus projectos que, uma vez concluídos, a Direcção Pedagógica de cada escola deverá submetê-los à comunidade escolar e ao conselho de escola, para a discussão e análise da sua pertinência. Destes projectos, deverão ser escolhidos aqueles que, pela sua importância, relevância, coerência e exequibilidade, possam ser úteis para a comunidade escolar.
(Ibidem, p.35)
Se se observar a recomendação no parágrafo anterior, nem à literatura nem às outras áreas que são aludidas neste documento se dá um enfoque explícito sobre como estas actividades se vão desenvolver.
Em contrapartida, no que tange às Áreas Curriculares do 1º ciclo (ESG1), assume-se que tais ciclos têm como objectivo desenvolver o hábito e o gosto pela leitura de obras, especialmente de autores moçambicanos, dos Países Africanos de Expressão Portuguesa (PALOP's) e da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). E frisa:
Neste ciclo, particular atenção será dada à valorização da literatura moçambicana, contribuindo assim para a preservação do património cultural e para a construção da identidade nacional.
(MINED e INDE, 2007)
Pode-se, assim, dizer que os curricula não trazem concretamente informações sobre como o ensino de literatura se vai proceder, apenas vincam a sua importância na preservação do património cultural e construção da identidade nacional.
Espaços reservados nos curriculos para os conteúdos de literatura no I Ciclo (9ª Classe)
Segundo Fonseca (2000, p.37), língua e literatura são termos que se associam automaticamente. Ou seja, não existe língua sem literatura nem literatura sem língua. Para esta autora, o ensino de literatura não se trata de ensinar língua mais literatura ou de ensinar língua e depois literatura, mas de se ter consciência de que faz parte da competência do falante e está nela fundamente enraizada desde as fases mais precoces da aprendizagem linguística, a capacidade de explorar as amplas virtualidades cognitivas e lúdico-catárticas de uma relação autotélica com a língua.
Dito de outro modo, o ensino de literatura não constitui uma actividade isolada, está integrado no ensino de língua portuguesa. Aliás, este conteúdo (literário) não se deve isolar das outras componentes (gramática, leitura, escrita e oralidade).
Vigotsky (1998), apud Barros (2014), ressalva que por trás das palavras existe uma sintaxe dos sentidos das mesmas. Essa sintaxe, gramática, tem origem nas formas sociais e interacção verbal, mas é permeada por uma realidade psicológica individual.
Ademais, de acordo com o MEC/SEF (1997) apud Barros (2014), para aprender a escrever, é necessário ter acesso a textos escritos, testemunhar a utilização que se faz da escrita em diferentes circunstâncias, defrontar-se com as reais questões que a escrita coloca a quem se propõe a produzi-la.
Moçambique não foge, portanto, de tal regra, na medida em que as aulas de literatura são ministradas na disciplina de língua portuguesa. Todavia, o que se verifica é que (i) os conteúdos de literatura têm muito pouco espaço nessas aulas; (ii) os professores limitam-se a definir os tipos de texto, mandar fazer cópia dos mesmos e lê-los, às vezes em aula, noutras, em casa. E, (iii) quando se lêem em casa, os professores não se ensejam em discutir, explicar e aprofundá-los nas aulas subsequentes.
Pode-se assumir que os conteúdos de literatura são pouco vistos dado ao facto de os alunos desta classe não lerem, virem da 8ª Classe com dificuldades e, por isso, se limitarem à teorização, exemplificação e pouco aprofundamento.
Verdade ou não, é irrefutável que o professor, ao conceder pouco espaço para conteúdos de literatura, ao se limitar a definir os tipos de texto, mandar fazer cópia dos mesmos e não se analisarem nem aprofundar em aulas, mesmo que subsequentes, não estará, deste modo, a colmatar as dificuldades e falta de hábito e/ou gosto pela leitura que os alunos apresentam.
Pelo contrário, o professor estará a ser simplificador, aquele que, segundo Puves (1990), apud Serôdio (s/d), centra o seu ensino sobretudo nas áreas do conhecimento e da aplicação de conhecimento relacionáveis com objectivos de mais curto prazo, dando pouca atenção às práticas e hábitos literários dos alunos, o que pode implicar um problema no futuro do aluno, assim como dificuldades no próprio professor no acto de correcção.
Analisando esta tentativa de argumentação, sem querer discordar dela, pode-se aferir que há algum problema que parte da base, ou seja, os instrumentos orientadores (curricula), Programa da Disciplina de Língua Portuguesa assim como o documento mãe (PCESG), tal como ilustrámos no primeiro tópico desta pesquisa: não arrolam, de forma clara, estratégias para o ensino de literatura nas aulas de língua portuguesa, o que “obriga” os professores a privilegiarem o ensino de gramática em detrimento do ensino de literatura.
Em Moçambique, a literatura é ensinada nas aulas de português, cabendo ao professor da disciplina a melhor selecção dos conteúdos. Esta abordagem ajuda a perceber que, se os curricula se limitam apenas a olhar para a literatura como “leitura” e forma de preservação do património cultural e construção da identidade nacional, o ensino de língua portuguesa, que inclui também a componente literária, basear-se-á apenas na exploração de aspectos gramaticais e/ou outros, deixando de lado a literatura que, de acordo com Coseriu (1993, p.30), não utiliza simplesmente a linguagem, mas constrói linguagem, desenvolve-a, e realiza virtualidades já nela contidas.
Dito de outro modo, alguns aspectos gramaticais (e não só) podem ser melhor fruídos através da conciliação entre gramática e literatura, pois que literatura não é meramente uma produção textual, mas, também, construtora da linguagem e de processos linguísticos.
Assim sendo, há uma necessidade de se reformularem estratégias e métodos de exploração de conteúdos de literatura em aulas de língua portuguesa nas escolas secundárias (e não só) de forma eficaz, para a colmatação da problemática em análise.
Há necessidade, igualmente, de se olhar para a educação nos dias que correm, de forma que as estratégias adoptadas vão ao encontro das necessidades actuais, através de questionamentos como:
Afinal, quais são as finalidades da leitura na escola e na sociedade? Quais são as habilidades a serem praticadas? Quais são os valores a serem vivenciados? Quais os autores a serem fruídos? Quais as competências almejadas? Porque, sem discussões para resolver estas questões, a leitura não sairá da esfera do ensaio-e-erro ou do auto-didatismo inócuo.
(Da Silva, 2000, p.565)
Os textos literários que se lêem em aulas de língua portuguesa
No concernente aos textos literários que se lêem nas aulas de língua portuguesa, trata-se de textos constantes dos manuais de ensino aprovados e recomendados pelo Ministério da Educação e Desenvolvimento Humano; havendo, portanto, algumas divergências na selecção. Trata-se de textos literários parciais (excertos) como narrativos, poéticos e dramáticos.
Quanto à periodicidade e frequência de abordagem, como se referiu no tópico anterior, pouco tempo se leva a discutir, alguns dos quais nem se chegam a ver, limitando-se, os professores, a mandar fazer leituras complementares sobre os mesmos. Isto mancha a aprendizagem dos alunos, uma vez que:
A literatura pode associar-se à aprendizagem linguística, como grande motivador e como factor de diversificação. No entanto, o desenvolvimento da competência linguística e comunicativa só pode ser efectivamente fomentado, se os textos oferecidos forem efectivamente lidos, interpretados, discutidos e reescritos pelos alunos.
(Serôdio s/d, p.473)
Portanto, há uma grande necessidade de se analisarem os textos que se lêem na sala de aulas, não se limitando aos contidos nos manuais, embora recomendados pelo MEDH.
Deve-se saber o valor e importância que a leitura tem, pois, sem ela, a competência linguística e comunicativa que se prevêem construir no PCESG, alínea f), do número IV, redundarão em fracasso. É tarefa do professor, como indivíduo formado e que está para educar, formar e fazer saber, criar estratégias de cultivo da leitura, para o bem da literatura e de seu ensino.
Aos docentes da leitura não restará outro caminho senão encontrar processos de chegar ao leitor pela via da criação de interesses e expectativas, eventualmente pela via da sedução, por que não?
(Loureiro, 2000:867)
Para além do Plano Curricular do Ensino Secundário Geral (PCESG) não trazer metodologias claras sobre como integrar os conteúdos de literatura nas aulas de língua portuguesa, os professores não traçam melhores formas de integração destes conteúdos, limitando-se apenas a leccionar conteúdos gramaticais em detrimento dos literários.
Para se ultrapassar este dilema, é necessário que se reformulem as estratégias e métodos de exploração destes conteúdos (gramaticais, literários e outros), porque as competências linguística e comunicativa só podem ser efectivamente fomentadas, se os textos oferecidos forem efectivamente lidos, interpretados, discutidos e reescritos pelos alunos.
Os professores, com o auxílio das direcções das escolas, devem, portanto, traçar métodos de inserção de conteúdos de literatura em aulas de língua portuguesa e se conscientizar de que língua, gramática e literatura, quando casadas, imprimem uma dinâmica e melhor comunicabilidade entre os falantes de língua portuguesa, que é um dos objetivos previstos no PCESG.
Bibliografia
Barros, G. (2014). Ler ou escrever?: Dificuldades e perspectivas nas aulas de língua portuguesa. Guarabira-PB: Universidade Estadual da Paraíba, pp. 50.
Da Silva, E. (2000). Leitura no mundo Contemporâneos e a Formação do Leitor. In Didáctica da Língua e Literatura. Coimbra: Almedina, pp. 558-566.
Da Silva, E. e ABUD, M. (2011). Estratégias de ensino e aprendizagem da gramatica: apreciações docentes na formação continuada. São Paulo: UNITAU, n. 40(2), 2011.
De Oliveira, M. (2002). Vygotsky – Aprendizado e desenvolvimento: Um processo sócio-histórico. 4.ed, São Paulo: Editora Scipione, pp. 111.
Fonseca, F. (2000). Da Inseparabilidade entre o Ensino da Língua e o Ensino da Literatura. In Didáctica da Língua e Literatura. Coimbra: Almedina, pp. 37-45.
Júlio, Z. (s/d). Ensino da Literatura – Um desafio para os professores de Língua Portuguesa em Moçambique, Tete: Universidade Pedagógica.
Loureiro, L. (2000) Leitura: um processo interactivo. pp. 866-874. In Didáctica da Língua e Literatura. Coimbra: Almedina.
Mined e Inde. (2007). Plano Curricular do Ensino Secundário Geral (PCESG): documento orientador – objectivos, política, estrutura, plano de estudos e estratégias de implementação. Maputo: Imprensa Universitária.
Serôdio, C. (s/d). O Ensino da Literatura: Concepções e Práticas. Lisboa: Universidade de Lisboa, pp. 467-473.
Referências
1 Usam-se, no presente artigo, os termos Texto Literário e Literatura para se referir ao mesmo objecto.
2 De preferência público, uma vez que o privado, neste e noutros quesitos, apresenta um alto nível de qualidade.
3 Refero-me a Ensino de Línguas, Tradução e Interpretação, Literatura (…)
4 Plano Curricular do Ensino Secundário Geral, (MINED e INDE, 2007).
5 Sistema Nacional de Educação.
6 Plano Curricular do Ensino Secundário Geral.
7 Que apresenta, igualmente, incongruências, devido ao facto de Português constituir língua segunda (L2) para maior parte dos alunos (trata-se de um assunto que merecerá a nossa atenção nas próximas abordagens).
8 Trata-se de casos em que, na mesma escola, alguns professores preferem manuais de uma determinada editora, outros doutra; todavia, todos aprovados pelo MEDH.
9 Ministério de Educação e Desenvolvimento Humano.
10 Plano Curricular do Ensino Secundário Geral.