Para aqueles que não são psicanalistas e nem simpatizantes da psicanálise, alguns termos podem ser meio estranhos, mas tentarei explicá-los ao longo do texto. Existe na psicanálise um dispositivo de estudos chamado cartel. O cartel, nada mais é, que um grupo em que 3 ou 4 pessoas se juntam para estudar um tema que seja de interesse comum, e é por este motivo que estas pessoas se reúnem, por um tema.

Agora que todos já entendem um pouco o que é um cartel, vou contar brevemente sobre a minha última experiência neste espaço de estudos, intitulado Cartel do Desejo.

Senti vontade de estudar o tema quando o primeiro Cartel que participei estava se encerrando. O cartel do desejo teve início em outubro de 2020, já estávamos isolados na pandemia do Covid-19, e veja que interessante, estudar sobre o desejo em meio a uma pandemia, achei significativo, isolados, cada membro em uma cidade, começamos nossos estudos de modo on-line.

Poucos meses antes do início da pandemia eu havia iniciado minha clínica em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul. Estava, então, realizando dois desejos, o primeiro e mais antigo, de morar em Campo Grande, e o segundo, de viver da clínica psicanalítica. Até aí ok, saí do emprego que eu estava na época, e resolvi apostar na clínica, porque é isso, uma aposta, um investimento de libido, de energia e de desejo.

Mas junto com o início da clínica vieram as inseguranças e a solidão. E como é difícil esse negócio de clínica gente! Eu, numa cidade, nova só conseguia me perguntar: como é que vou conseguir pacientes? Como as pessoas vão saber que eu estou atendendo aqui? Será que vou conseguir viver disso? E eu respondia a mim mesma: eu tenho que conseguir, eu vou dar um jeito, é isso o que sempre desejei desde o primeiro ano de faculdade, só estudei psicanálise, só me preparei para a clínica, tem que dar certo! Mas, como?

Sem nenhuma resposta para aquele momento, segui caminhando e acreditando que os pacientes viriam, não sabia bem como, mas viriam.

Entendo que o isolamento que a pandemia nos obrigou a ter contribuiu muito para que a solidão, que já existe na clínica psicanalítica, tenha tido uma proporção maior para mim. Isolada, com medo desse vírus que invadiu o nosso real, com poucos pacientes e com muito tempo livre, o que me restava? Estudar, aproveitar este tempo que eu tinha. Fui tentando preencher a solidão e a angústia que eu sentia com estudos, literatura, lives, grupos de estudos etc. O que até aquele momento eu entendia como estudo, há pouco tempo percebi que foi trabalho! Trabalhei muito nestes dois anos, não apenas atendendo, mas também me preparando para os atendimentos que estariam por vir.

Em um almoço de comemoração dos 15 anos do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul, Sônia Albert fez uma fala que me chamou atenção para o que eu havia vivido nos últimos dois anos, sua fala foi:

A adolescência implica inúmeras descobertas, e não são sem consequências, descobertas que o sujeito tem que fazer por si só, pois a solidão é a companhia maior do advento da singularização, ou seja, do próprio sujeito do desejo 1.

Em sua fala ela enfatiza que o adolescente tem que viver a solidão, ele tem que senti-la! A solidão é necessária para o processo de estruturação psíquica e para a separação deste sujeito de seus pais.

As experiências dos adolescentes com a solidão, que Sônia Albert enfatizou como sendo importantes e necessárias, eu trouxe para a experiência da clínica psicanalítica, ao menos para a minha! Foi no divã, que ao dizer da minha angústia em não encontrar trabalhos dos colegas que falassem sobre este sofrimento que eu senti no início da minha clínica nesta cidade nova, que ficou claro que era sozinha que eu teria que fazer esta caminhada, estas descobertas, esta escrita, eu precisava passar por isto sozinha, viver e sentir esta solidão. Me senti uma adolescente neste momento, entendi que ao longo dos dois anos de Cartel e de pandemia eu estava estruturando minha psiquê para esta caminhada que sempre desejei, o de ter a minha clínica. Uma caminhada que está longe de chegar ao fim, aliás, não existe um fim, só percurso e estrada.

No texto Ato de fundação 2, Lacan inicia dizendo: Fundo - tão sozinho como sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica - a Escola Francesa de Psicanálise [...]. Lacan não fica paralisado diante de sua solidão, ao contrário, ela o move, o direciona. É lógico que não fundei uma escola, mas nesta relação intensa e sofrida com a solidão que me vi nos últimos anos pude fazer escola, fazer laços, amizades.

O sofrimento também me moveu, me moveu para dar novos passos, passos importantes, arrisquei-me e fiz, mais uma vez, minha aposta na clínica psicanalítica, em um novo momento da minha clínica, agora em um espaço só meu.

Apostei mais uma vez no meu desejo, no meu desejo da clínica, no meu desejo de viver da minha clínica, no meu desejo de atender, no meu desejo de escutar as pessoas que me procuram, no meu desejo de aprender mais sobre a psicanálise, no meu desejo de seguir nesta caminhada que é a psicanálise. Segundo Fingermann:3

Ser habilitado pela sua própria travessia analítica a suportar o ato do psicanalista é necessário, mas não é suficiente, pois é preciso que as “razões da clínica se desdobrem e explicitem mais além da provação do ato – solidão, risco, aposta.

O desejo e a solidão caminharam lado a lado nestes últimos anos, e ao escrever este trabalho, ao colocar em palavras os sentimentos que me acompanharam nestes últimos anos me perguntei, como é possível desejar tanto algo, no caso a clínica psicanalítica, sofrer tanto no processo de estruturação deste trabalho e não ter em nenhum momento a vontade de desistir?

Bom, a resposta me veio enquanto eu cozinhava, veio como um sussurro, um sussurro do inconsciente talvez, dizendo que só me foi possível suportar a solidão pela via do desejo.

Notas

1 Albert, Sônia. Apresentação na comemoração dos 15 anos do Fórum do Campo Lacaniano do Mato Grosso do Sul, 2022.
2 Lacan, Jacques. Ato de fundação [1964-1971]. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar: Jorge Zahar Edito, 2003.
3 Fingermann, Dominique. A prova de psicanalista: a sua deformação. Revista da Associação Psicanalítica de Curitiba. Associação psicanalítica de Curitiba, n. 30. Curitiba: Juruá, 2015.