Você respeitado leitor, já ouviu falar em ruído, em ruído na medicina?

De acordo com Daniel Kahneman1 e colaboradores, a medicina é ruidosa:

Para um mesmo paciente, diferentes médicos oferecem diferentes julgamentos sobre câncer de pele ou de mama, cardiopatia, tuberculose, pneumonia, depressão e uma série de outras enfermidades. O ruído é particularmente alto na psiquiatria, no qual o julgamento subjetivo obviamente é importante. Entretanto, considerável ruído também é encontrado em áreas que talvez não fosse esperado, como na avaliação de radiografias.

Mas, o que é ruido?

Poderíamos definir ruído como qualquer tipo de interferência que pode afetar a percepção ou interpretação correta da informação original.

Imagine que você está em uma mesa conversando com amigos sobre as últimas notícias, e de repente, começa uma música ao vivo inesperada, outros grupos chegam ao local, você recebe uma chamada do seu trabalho em seu celular, uma criança começa a chorar e o garçom aborda a mesa para que todos possam fazer seu pedido. Lendo parece caótico, mas, é a nossa realidade na grande maioria das vezes. E não precisamos ir muito longe, e nem ser radicais. Nas próprias organizações em reuniões para tomada de decisões, o mesmo ocorre: as pessoas estão apressadas para ir para a próxima reunião do dia agendada, por volta das 11:00h da manhã já começam a pensar no almoço, recebem ligações sobre outros pontos e reduzem substancialmente o foco do momento presente. Será que o objetivo desta reunião foi alcançado com cem por cento de sua capacidade efetiva?

Não é coincidência que tivemos um aumento significativo de casos de burnout, as estimativas globais, publicadas pela Organização Internacional de Trabalho (OIT), aponta que aproximadamente 398 milhões de dias de trabalho são perdidos todos os anos devido a doenças relacionadas ao estresse, ansiedade e depressão. Dentre as profissões mais afetadas, profissionais da área da saúde estão referenciados e podemos dimensionar isso após a pandemia do COVID.

Então, além do ruído do mundo atual temos também que considerar o estado mental dos profissionais de saúde e como isso afeta as tomadas de decisões.

Mas, de uma forma geral, na medicina, o ruído pode surgir quando profissionais de saúde, como médicos, enfermeiros e outros profissionais da saúde, chegam a conclusões diferentes ou tomam decisões distintas para pacientes com características semelhantes, devido a fatores como diferenças individuais de conhecimento, interpretação de exames, experiência, ambiente de trabalho ou até mesmo o momento em que a decisão foi tomada.

Essa variabilidade pode ser problemática, pois pode levar a diagnósticos incorretos, tratamentos inadequados e, em última instância, impactar negativamente a qualidade dos cuidados de saúde e os resultados dos pacientes.

Apesar dos artigos científicos trazerem a luz algumas soluções possíveis para determinados tipos de doenças, não são todos os médicos que os consomem ou se atualizam em congressos para a troca de conhecimentos e isso leva a uma ruptura de nivelamento.

Trazendo um exemplo para a nossa reflexão, um dos tratamentos mais desafiadores na medicina é o câncer. Hoje existem diferentes tipos de abordagens para um mesmo diagnóstico que variam desde a combinação medicamentosa e suas respectivas dosagens até a sequência de terapias e procedimentos.

No caso do câncer de mama, temos algumas alternativas de tratamento como os anticorpos monoclonais, quimioterapia, radioterapia e cirurgia. E dentro destas opções existem uma infinidade de considerações, como o estágio da doença, a velocidade da progressão do tumor, local e o estado global do próprio paciente.

Assim, cabe ao oncologista analisar o todo para definir o melhor recurso terapêutico: se a indicação for cirúrgica, a mastectomia deve ser total (remoção completa da mama) ou parcial? Serão necessárias sessões de radioterapia, antes da cirurgia para auxiliar na redução do tamanho do tumor? Qual seria a quantidade ideal de sessões e sob qual dosagem de radiação? Após a cirurgia, de forma preventiva, são indicadas algumas sessões de quimioterapia para matar alguma célula cancerígena remanescente? Qual o melhor protocolo combinado para este fim? Qual esquema de medicamentos deve ser adotado e as quantidades de cada um? O paciente está disposto ou possui saúde mental para enfrentar todo este processo? Existem outras opções?

Este é um exemplo fictício, mas, que podemos observar com exatidão a quantidade de ruídos que podem surgir no direcionamento de um tratamento como este.

A pergunta que nos fica então é se existe alguma ferramenta ou processo que possa diminuir o ruído nas tomadas de decisões e aumentar a assertividade das escolhas.

Alguns esforços já são praticados em hospitais e instituições de saúde para minimizar a variabilidade indesejada nas decisões médicas, buscando melhorar a consistência e a qualidade, como protocolos e diretrizes clínicas baseados em evidências, segunda opinião e revisão de pares, educação contínua e o envolvimento do paciente na tomada de decisões.

Contudo, uma nova tecnologia desponta, prometendo atuar de forma coadjuvante: a inteligência artificial (IA). Esta poderia ser implementada com a criação de algoritmos que podem analisar grandes quantidades de dados clínicos e ajudar a identificar padrões que levam a melhores diagnósticos e tratamentos. Elas analisariam exames de laboratório, imagem e históricos clínicos do paciente, auxiliando na identificação de tratamentos mais adequados e personalizados com base nas características individuais de cada paciente, como genética, idade, resposta a tratamentos anteriores e tratamentos atuais de outras doenças pré-existentes como diabetes, obesidade e cardiopatias.

A IA também poderia contribuir no monitoramento contínuo do paciente e alertar os médicos sobre quaisquer mudanças significativas, permitindo intervenções mais rápidas, reduzindo o ruído causado por atrasos na identificação de problemas.

E por último, mas não menos importante, a triagem e detecção precoce de doenças, identificando sinais iniciais de condições fisiológicas antes mesmo de se tornarem sintomáticas, direcionando para diagnósticos mais rápidos e tratamentos eficazes.

Importante ressaltar que alguns projetos já estão em andamento como o projeto DeepMind, do Google, que desenvolveu uma IA capaz de diagnosticar doenças oculares com precisão similar a especialistas humanos.

O custo no desenvolvimento destas inovações e escalabilidades ainda podem apresentar custos elevados. Mas, conforme a demanda por tais tecnologias aumentam, os custos associados diminuem e se tornam financeiramente viáveis para hospitais, clínicas e outros estabelecimentos públicos. A longo prazo, medidas como esta tendem a diminuir custos de tratamentos inefetivos e prolongados, impactando de forma positiva o sistema financeiro destas instituições.

Existe também preocupações relativas a questões éticas de privacidade e segurança dos dados que precisam ser muito bem discutidas e elucidadas. Há uma entidade vinculada a Organização Mundial das Nações Unidas (ONU) que pressupõe alguns princípios para a regulamentação da ética e governança da IA: proteção a autonomia humana, promoção do bem-estar, segurança e interesse público; transparência, explicabilidade e inteligibilidade, promoção da responsabilidade e prestação de contas, inclusão e equidade e promoção de uma inteligência artificial que seja responsiva e sustentável.

No Brasil, a Lei Geral de Proteção de Dados é usada para garantir a proteção de dados do paciente e a tranquilidade para a exposição de seus diagnósticos. O Projeto de Lei 21/20 cria o marco legal do desenvolvimento e uso da IA pelo poder público, por empresas, entidades diversas e pessoas físicas. O texto, em tramitação na Câmara dos Deputados, estabelece princípios, direitos, deveres e instrumentos de governança para a IA a fim de que se garantam os direitos humanos e os valores democráticos.

Em nenhum momento foi mencionado que o uso da IA substituiria um profissional da área da saúde, mas, que sim poderia atuar como um assistente poderoso para aprimorar e apoiar a prática médica. O uso responsável e ético da IA é essencial para que ela contribua de forma positiva para o tratamento médico e redução do ruído clínico.

Se a IA pode auxiliar em tantos setores como empresariais, educacionais, planejamento urbano, científico, direito e muitas outras áreas, por que não incorporá-la para a promoção do bem-estar em geral?

Notas

1Kahneman, D., Sibony, O., Sunstein, C. R., & Leite, C. A. (Tradutor). (28 de setembro de 2021). Ruído: Uma falha no julgamento humano [Capa comum]. Edição Português.