Este título é tributário de um célebre ensaio de Oscar Wilde, «O declínio da mentira». Esse ensaio, já traduzido em Português, consiste numa discussão estética, sobre o valor da mentira na Arte e na vida humana. Pensado para valorizar, paradoxalmente, os méritos e a necessidade da mentira nas nossas experiências individuais e sociais, merece ser relido hoje a respeito de muita da discussão sobre «cancel culture» e outras formas de negação da liberdade e da individualidade.
O declínio da realidade, contudo, é mais recente e, embora seja também paradoxal (pelo menos na aparência), manifesta-se com crescente intensidade na vida pública e institucional, sendo já uma das marcas definidoras do nosso tempo (escrevo no dia em que a OMS decretou o fim da pandemia de covid19). O que merece a designação de declínio da realidade é a rejeição dos dados do real, não apenas a sua manipulação ou omissão. Não se trata de uma diferença de grau: quando a democracia ateniense discutia a maquilhagem discursiva e a manipulação das forças de cada argumento esgrimido em público, não rejeitava a realidade em discussão por muito que na disputa retórica as visões sobre o real divergissem. Já no nosso tempo, quando os regimes totalitários tentaram tornar os seus subordinados indiferentes à diferença entre verdade e mentira (para glosar uma célebre tese de Arendt) prestavam nisso uma homenagem – ainda que involuntária – à realidade e aos seus predicados.
Aquilo a que hoje assistimos diariamente é bem diverso. No «mundo» a que nos referimos (o Ocidente alargado, como agora se diz) estamos formalmente nos antípodas das sociedades totalitárias, regidos pelo signo da transparência, da democracia e dos Direitos Humanos. Aqui faz sentido falar em realidade não obliterada nem torturada impunemente, graças aos múltiplos mecanismos de controlo e de contrapoder (mesmo os que degeneram ocasionalmente). Onde existe a liberdade, as liberdades de pensar, de falar, de se manifestar, etc., a experiência quotidiana de indivíduos, sociedades e instituições permite acompanhar a valorização ou desvalorização (no exacto sentido ético e não apenas económico) do real, algo que a vida sob o arbítrio de poderes sem moderação exclui por definição. Ora, o que se manifesta uma e outra vez na generalidade das sociedades livres é algo de uma natureza diferente das adulterações do real que conhecemos da História; aquilo a que assistimos é, por parte de quem pode viver a realidade na sua complexidade, à sua rejeição expressa, por vezes em bloco, outras vezes em parte. Já mencionámos a «cancel culture», exemplo possível, mas a dimensão institucional desta rejeição é a que mais importa, pois é isso que consuma o declínio da realidade.
Apesar de apenas a 5/5/23 a OMS ter decretado o fim da pandemia, a vida já retornara há normalidade há meses. Em muitas áreas, aliás, a normalidade tinha absorvido os efeitos da pandemia sem demasiados problemas (em Normalidade, de 2020, isto mesmo era notado). E o que assistimos é ao que era previsível, mesmo visível, desde o início desse interregno global que foi o Covid19: uma proliferação nas sociedades mais livres e desenvolvidas da rejeição da realidade, num permanente espírito de campanha eleitoral em que as alternativas existem, mas reduzidas ao contextual, não ao fundamental (com Biden ou Trump, o foco americano é a China; com Bolsonaro ou Lula, a proximidade a Putin mantém-se). O declínio da realidade consiste em negar os dados da experiência individual, social e institucional sem verdadeiramente o substituir por nada, apenas multiplicando essa negação indefinidamente sem outro fim além dessa rejeição. A falta de um fim na rejeição das evidências é a natureza do declínio da realidade e indicadora de que não se trata de um agravamento das torções ao real impostas no passado um pouco por toda a parte.
O declínio da realidade decorre em simultâneo e conjuntamente (o que não significa de forma articulada nem sequer lógica) em dois planos: o da imagem pública das sociedades, aquele que se desenvolve de forma privilegiada nos media; e o dos agentes institucionais, que constituem a tessitura formal da realidade que as sociedades experienciam mesmo sem ter noção clara disso. O rápido, cada vez mais rápido, declínio da realidade resulta da inconsequência de ambos os planos e da cumulatividade dos seus efeitos. Sem a redoma de excepcionalidade que o combate à pandemia proporcionou, criando um consenso instantâneo quase universal, vemos a degeneração da integridade institucional a tornar-se norma (normalizar-se), a mentira como modo próprio da acção dos poderes institucionais, apesar de todos os «códigos de ética», «supervisores», normas várias; e as permanentes convulsões mediáticas, dependentes sobretudo das imagens disponíveis e da sua reprodutibilidade infinita, fazendo suceder modas, escândalos, crises (palavra esgotada para lá de qualquer sentido), etc. O efeito conjunto destes dois planos reforça-os mutuamente, mesmo que de forma descoordenada. A rejeição da validade de eleições sem evidências, as teorias conspirativas a respeito dos mais variados temas (vacinas, 5g, etc), o desinteresse pela incerteza que, mais do que o risco, caracteriza cada vez mais as sociedades em que vivemos, tudo isso radica e tudo isso contribui para a rejeição da realidade – a do passado, a do presente, a do futuro.
O declínio da realidade exprime-se institucionalmente e mediaticamente do mesmo modo: um frenesi permanente de campanha (eleitoral, publicitária, tanto faz) sem outro sentido que não promover quem a conduz e sem outro destino que não desaparecer instantaneamente quando nova campanha se disponibiliza - quem se lembra hoje de Greta Thunberg e da sua guerra de tweets com Donald Trump? Entretanto a realidade das alterações climáticas persiste, sempre removida da vista e do foco das decisões por quaisquer epifenómenos «urgentes» ou «emotivos» que adquirem prioridade sobre coisas áridas e «teóricas» (um termo insultuoso).
A normalidade era isto antes da pandemia e depois dela continua assim, por isso o declínio da realidade é o traço definidor da actualidade e o seu impacto sente-se mais nitidamente no plano institucional, aquele que mais distante deveria ser desse declínio. Sendo institucional, contudo, carece de análise em concreto: as instituições portuguesas, brasileiras, europeias, assim por diante. Podemos abordá-las de modos mais ou menos sistemáticos, mas antes de qualquer síntese, são necessárias análises.