Todas as palavras,
de um homem à espera de si mesmo
mais se calam
que dizem, menos aprendem
que ensinam, mais se equivocam
que confirmam
os grandíssimos mistérios do universo.(Paulo Tassa em O homem à espera de si mesmo)
“Nico tinha olho azul, nove anos. Antônio, miúdo, seis. Júlia, barriguda, quatro” (Fuego1), assim começa. Enquanto lia Os Malaquias, de Andrea Del Fuego, foi pelo filho do meio que a percepção do desamparo se fez carne. Talvez pelo pouco corpo – anão –, talvez pela palavra mofina, voz que quase não sai nem se escuta e, no entanto, grita. O miúdo, em dimensões de polissêmica redução, materializa desencontros de modo tão delicado a criar um súbito desejo de abraçá-lo.
Interrogações: como pode uma autora inventar algo assim? De que espaço subjetivo raro e profundo tirou traços para inventariá-lo, fazê-lo Antônio e produzir identificações com tal imensidão? Ora, sabe-se que o campo da literatura tudo suporta e que o gesto de autoria empreende a força singular de quem se (em)presta a tal tarefa. Fuego o faz, e de braços dados com (seu e nosso) Antônio. O início dos fios indica que:
(...) num mínimo gesto a tempestade nasceria dentro da casa. Os pais dormiam em um quarto. Nico, Júlia e Antônio em outro, na mesma cama, aninhados em forma de embrião (...) O clarão aqueceu o sangue em níveis solares e pôs-se a queimar toda a árvore circulatória. Um incêndio interno que fez o coração, cavalo que corre por si, terminar a corrida em Donana e Adolfo. (Fuego2)
A orfandade posta de início dilata-se impiedosa. Ela se alastra pelos trajetos de palavras e de impossível dizer nos quais os personagens se banham e afogam. Nico, Antônio e Júlia contam, em um primeiro momento, apenas consigo para reconhecer que estão vivos, e matar a fome e o desalento. Os irmãos tremiam, lábio roxo, pés frios (Fuego3). A rapadura, somente um naco, passa de mão a bolso entre eles, indiciando a secura do trombamento incontornável com a morte dos pais e com a separação em curso.
Os pais foram esturricados, caiu um trovão na casa. O mais velho ficou na fazenda, Seu Geraldo pegou o menino pra ele. (Fuego4)
É possível aqui estranhar o modo como, na cultura brasileira, uma criança pobre e órfã pode ser objetificada como propriedade de alguém, dada, pegada, emprestada e tomada à revelia de qualquer forma de proteção.
A separação, o desamparo e o luto se desdobram a partir daí na vida desses três pequenos, que crescem sem uma convivência próxima entre si, longe da serra e da casa onde nasceram, destituídos de adultos que possam escutá-los em suas demandas nem que convoquem neles o desejo por algo. Sobre Nico, o trabalho precoce lhe foi imposto, levava para o cafezal o almoço dos trabalhadores. A febre se mantinha, vestígios do raio ficaram nos olhos, cintilando. (Fuego5). De Júlia, sabe-se que habitava o quartinho dos fundos com a mesma resistência que habitava o orfanato. O rosto nunca aderia por completo ao travesseiro, sempre um intervalo entre ela e o ambiente. (Fuego6). Já Antônio segue tropeçando, inclusive de modo literal, e a cada queda algo do desencontro se atualiza com cores mais fortes:
(...) se chafurdava nas calcinhas grandes e ninguém viu um anão perdendo o freio, com a metade do corpo dentro da gaveta (...) foi apanhar uma bola na poça de água e tropeçou no pátio por conta das pernas tortas. Ele se ajeitou num dos bancos da grande varanda, esperando o estio. Ficou molhado o resto da tarde, a regra era botar pijama às sete da noite, só no fim do dia ele trocou a camisa ensopada pela flanela seca. (Fuego7)
A narrativa desliza em três ambientes separadamente afetados por nascimentos e morte de cadáveres devorados por colônias famintas (Fuego8), barrigas alargando pence (Fuego9) que distendem e cavam vida, cheiro de carne quente e fresca (...) um embrulho pulsante (Fuego10), vento que passa por baixo (Fuego11). Após a separação dos três irmãos, os lugares de sobreviver somam passos de pouca alegria, tendo o componente do desencontro uma constância enorme. Júlia nunca irá reencontrá-los e todo o enredo é um olhar que nunca se cruza.
A rara tessitura de Fuego, que cose e emenda pelos avessos, vai pespontando aqui com uma linha mais forte a promessa do encontro e, ao mesmo tempo, deixando à mostra acolá os fios rotos do furo dele. Enfim, ela amarra uma trama de ausências que se presentificam nessas vidas em curso; com maestria, ritmo de delicadeza e suavidade, acolhe, nomeia e cria com o desamparo.
E aqui vale dar tratos à bola. De que se trata isso que, no humano, está sempre prestes a descarrilhar o encontro e a produzir o gesto inexato, um pouco a mais ou a menos, mas sempre fora do prumo? Dizer do desencontro estrutural implica considera o que Freud12 aponta na experiência primeva do filhote humano. O bebê grita, chora, faz barulho e produz sons que recebem, sem garantia, a resposta de alguém que supõe saber do quê se trata aquilo. Esse é o lugar primeiramente infantil: o corpo frágil e recém-nascido dá notícias da impossibilidade de uma sobrevivência sozinho e reclama a presença de alguém que possa alimentá-lo e protegê-lo, assegurando a subsistência mais elementar. Sobre isso, Harari13 afirma que o infans:
não conta com os recursos para poder proteger-se por si mesmo a fim de procurar a subsistência mais elementar. Isso o diferencia de outros mamíferos; assim, por exemplo, não pode dirigir-se por seus próprios meios à fonte de alimentação; porém, emite um som que, do lugar de quem o recebe, ‘adota’ o valor de sinal.
Junto ao cuidado com o corpo, o adulto tece uma trama de palavras (e de silêncios) que irão banhar o infans, nomeá-lo, situá-lo em uma rede significante que irá defini-lo como aquele que é assim ou assado, que faz de certo modo, que se parece com alguém, que gosta de ou recusa algo etc. Freud14 aponta que essa figura, denominada de adulto experiente ou ajuda alheia, cumpre a função de situar o código no lugar onde as tensões e as excitações do corpo produzem uma barulhenta ebulição a reclamar escoamento e descarga. Esse ponto:
se efetua por ajuda alheia, quando a atenção de uma pessoa experiente é voltada para um estado infantil por descarga através da via da alteração interna [por exemplo, pelo grito da criança]. Essa via de descarga adquire, assim, a importantíssima função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais. (Freud15)
Eis o desamparo inaugural que constitui a base fundante daquele que fala: não há correspondência exata, nem representação termo a termo, entre a resposta do adulto e o choro do infans, algo aí se coloca como sempre desencontrado. Fome, sono, dor, medo, febre, calor são palavras que, para o ajudante alheio, condensam com a máxima evidência a certeza sobre o que acontece com o bebê, mas não correspondem exatamente ao motivo do grito, aliás, do grito nada se sabe e nunca será possível dizer. Do lado do sujeito, o grito recobre a sensação da qual jamais se saberá o que ela quis dizer. (Kaufmann16).
Desse jogo entre o sem sentido do grito do infans e a resposta construída pela ajuda alheia resulta a relação com o outro, que cuida e assegura alguma consequência apaziguante, ainda que temporária, e também a relação com o Outro da linguagem que dá chão para a emergência do sujeito. Está nesse cerne o processo de trabalho das palavras na sua função de constituir um sujeito, definindo assim uma estrutura determinante no seu trato com a alteridade e sua inscrição na cultura. Por fim, essas respostas supostas encerram a possibilidade de o som amorfo – que para o bebê é apenas mais um ponto na barulheira do mundo – vir a ser significante de um sistema organizado como língua (Saussure 17) e como discurso (Pêcheux18). A incompletude da língua e do sujeito seguirão como farol, atualizando os passos subjetivos do infans em seus pinotes e tropeções por / de dizer, enredando seus modos de estar e de se situar frente aos objetos do mundo, produzindo efeitos de retorno e atualização dessa hiância. O fio desencapado da língua dá choques ao siderar o vazio, como o trovão que caiu sobre a casa e na vida dos três irmãos, descarga elétrica que também os coloca a seguir adiante.
Que dizer do tamanho pequeno de Antônio como marca de um dito sobre o suposto adultério da mãe? E do parto difícil de Júlia, que pari e abandona o bebê como uma desconhecida, como marca de retorno do inominável? Ela que em uma cena anterior foi vítima desse mesmo gesto de uma mulher que se desfez de um bebê dizendo que voltava logo do banheiro, um golpe em que a infância comparece novamente objetificada. O trabalho de Fuego sustenta o buraco e borda em torno dele até o fim, quando o encontro faz cocegas no coração do leitor. Que promessa! Quanta luz no navio, enfim, será possível os três em uma virada toda!
Ficaram próximos, Júlia e os irmãos. Entre eles havia um passageiro girando o pescoço com facilidade, procurava parentes. O homem vestia casaco longo e chapéu. Um passageiro foi suficiente para impedir que Júlia e Nico se vissem. Quando um Malaquias dava um passo, o passageiro dava outro, quase ensaiados. Outros passageiros iam entrando no baile, empurrando malas. Antônio parou para amarrar o cadarço de Anésia. Júlia viu o anão de costas, aos pés da menina. Sentiu alívio, pensando ter feito o melhor, seu filho não ia ser escravo de criança, não ia trabalhar em casa de família e morar aos fundos, não na frente dela (...) Nico olhava para um lado, Júlia para outro. Os olhares fizeram duas retas paralelas, ele por cima, ela por baixo. Havia uma chance de intersecção, mas Nico deu um passo à frente e o ângulo do encontro foi desfeito. Júlia escapou de sua visão e ele dela, por um passo. Em água turva, as substâncias não se veem.” (Fuego19)
A contundência desse ângulo do desencontro emociona e bota de joelhos o coração do leitor, amolecido diante do apontamento do impossível. Um sentir-se em si e no outro diante dessa imensa placenta desamparadora que a vida inscreve; nem a contingência, nem o baile, nem a navegação dos três na mesma embarcação, nem o sono considerado seguro dos pais dentro de casa, nem a língua, nem o fim da história calam a condição de não ser possível acertar o alvo, ainda que, em seus trilhamentos significantes, o sujeito tente e insista. E torne a tentar novamente.
Diante disso, o que resta então? Primeiro, a possibilidade de seguir tropeçando na língua e, isso é precioso, quiçá, rindo e fazendo troça dessa condição e dessa ferramenta imperfeita (Henry20). Restam também a arte e a literatura, no caso, a leitura de traços dessa narrativa tão interessante com a delicada sensibilidade e a humanidade imensa inventadas por uma autora-prima, que peleja com as palavras até raiar o dia, sabendo que a luta não é (de todo) vã, como dizia Carlos Drummond de Andrade. Finalmente, permanecem os nomes de Nico, Antônio e Júlia a orientar, em parte e de forma não-toda, o que irrompe no adulto que somos; por eles e em nós, seguimos no baile.
Notas
1 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 7, 2022.
2 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 8, 2022.
3 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 9, 2022.
4 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 10, 2022.
5 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 12, 2022.
6 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 23, 2022.
7 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 31, 2022.
8 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 158, 2022.
9 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 157, 2022.
10 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 166, 2022.
11 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 154, 2022.
12 Freud, S. Projeto para uma psicologia científica. Rio de Janeiro, Imago, 1895 / 1977.
13 Harari, R. O que acontece no ato analítico? A experiência da psicanálise. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, p. 46-47, 2001.
14 Freud, S. Projeto para uma psicologia científica. Rio de Janeiro, Imago, 1895 / 1977.
15 Freud, S. Projeto para uma psicologia científica. Rio de Janeiro, Imago, p. 431, 1895 / 1977.
16 Kaufmann, P. Dicionário enciclopédico de psicanálise – o legado de Freud e Lacan. Tradução Vera Ribeiro, Maria Luiza X. De A. Borges; Consultoria Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, p. 84-85, 1996.
17 Saussure, F. Escritos de Linguística Geral. Organizados e editados por Simon Bouquet e Rudolf Engler. São Paulo, Cultrix, 2004.
18 Pêcheux, M. Semântica e discurso – uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas, Editora da Unicamp, 1975 / 1997.
19 Fuego, A. D. Os Malaquias. São Paulo, Companhia das Letras, p. 181-182, 2022.
20 Henry, P. A ferramenta imperfeita. Campinas: Unicamp, 1992.