Perceval falou de modo distinto.
Disse que em toda sua vida não dormiria duas noites seguidas no mesmo albergue. Quando tivesse novas de um caminho difícil, não deixaria de passar por ele /…/, não se absteria de lutar /…/,
até saber
a quem serve o Graal.(Chrétien de Troyes. O Conto do Graal)
Esta é a quinta etapa da nossa viagem. Começámos com a perscrutação da presença do ‘graal’ nas artes e nas letras, assinalámos algumas cartografias que lhe estão associadas, indicámos itinerários seus e observámo-lo em labirinto de espelhos (cálices, histórias e lugares). Vamos, agora, à pergunta decisiva que tudo muda ou pode mudar: “(a) quem serve o Graal?” ("do graal cui l’en an servoit", “del graal cui l’an an servoit”, “del graal cui l’an an servoit”, "de coi ce servoit ne cui on en servoit"). O seu par é a relativa ao sangue da lança ("qi on en siert ne c’on en fait"), mas centremo-nos na anterior e vejamos o que implica ela.
Servir, serviço. De acordo com o dicionário, tem na sua origem o latim servitium, “escravidão, servidão”, de servus, “escravo”, possivelmente de origem etrusca.
Sem dúvida que, qualquer que seja o modelo de governação, há sempre uma clara distinção entre quem governa e quem é governado e essa distinção é visivelmente numérica: são sempre poucos a exercer o poder sobre muitos. Mesmo quando se opõe a democracia à oligarquia, não é pensável a inversão da pirâmide socioeconómica e cultural, apenas variam os modos e processos de justificar a representação ou o poder. O que varia, pois, é a relação entre essas duas esferas (governante-governado): a legitimidade/legitimação do exercício do poder, peça angular do modo de governação.
É aí, em rigor, que a pergunta do Graal retumba: “quem serve o Graal?” E é essa pergunta que cura a ferida do Rei Pescador. Porquê?
Talvez porque ela está no cerne de uma relação e de um pacto social que deverão ser consciencializados e assumidos para bem da comunidade, do mundo, sob pena de deslizarem e/ou de manterem no domínio da arbitrariedade e da ditadura, génese de conflitualidade endógena e exógena e da consequente terra seca… A pergunta serve, pois, para definir um modelo de governação: centrado no bem do Povo ou na vontade do Governante. E serve, também, para promover o espelho do Príncipe: a consciência e a disposição em consonância…
Na célebre janela do Convento de Cristo em Tomar depois recriada na sua homóloga neo-manuelina do Palácio da Pena (ou do Graal) com inversão das posições do óculo sugerindo o movimento da vida e do cosmos, insinua-se a relação entre a terra seca e o seu reverdecimento (que a Charola explora), sendo certo o simbolismo de limiar entre duas esferas de diferente natureza que o dentro e o fora equacionam.
A chave encoberta na planta do Mosteiro de Santa Maria da Vitória, na Batalha, desenhada sobre o conjunto da Capela do Fundador, Corpo da Igreja e Capelas Imperfeitas (Inacabadas, por interrupção após 1533 no reinado de D. João III), celebrando a vitória portuguesa na Batalha de Aljubarrota (1385), inscreve-a numa vectorização temporal nacional em torno de um modelo graálico de governo subsumido na dinastia de Avis sob a Estrela de Belém encimando a pedra angular do primeiro túmulo conjugal português: o da Rainha do Graal (Filipa de Lencastre) e do Rei artúrico D. João I, centro do “colar de pérolas” composto pelos túmulos da ínclita geração, da qual ecoam as ideias e as realizações (desde O Leal Conselheiro, de D. Duarte, e Da Virtuosa Benfeitoria, de D. Pedro, até à demanda além-mar). Espelho(s) de Príncipe(s) monumentais onde o ideário ecoa. Do sonho ao seu incumprimento, que Pessoa sublinha na Mensagem (“Senhor, falta cumprir-se Portugal.”)…
Essa elevada missão de governação, de serviço, cederá, progressivamente, à ambição do poder e ao fascínio do seu exercício, pelo que toda a reflexão sobre a estratégia se centrará na conquista e na manutenção do poder: O Príncipe (1513, publ. 1523), de Maquiavel, é um dos mais clássicos exemplos dessa mudança de paradigma. Os Leopardos e os Leões são substituídos pelos chacais e pelas hienas, na expressão do Príncipe de Salina (Tomasi di Lampedusa), fundindo simbolicamente heráldica e ética numa teoria da História…
De então até hoje, as Monarquias cederam às Repúblicas, as Constituições sucederam-se, as Revoluções multiplicaram-se e os sistemas partidários tornaram-se indústrias políticas… o Reino da Qualidade cedeu ao da Quantidade (René Guénon), o ideal de serviço deixou-se substituir pelo de mando e do lucro.
A Arte de Governar do Graal ressoa na “Abóbada” (1851), de Alexandre Herculano, iniciado na aurora d’“O dia 6 de janeiro do ano da Redenção 1401”, e terá o seu templo na Capela do Fundador, Panteão de Avis, enquanto a de Maquiavel, inspirada em César Bórgia, ressoa no Memorial do Convento (1982), de José Saramago, iniciado sob o anúncio da régia visita nocturna, denunciando o despotismo com um olhar atravessando os tempos até nós…
A quem serve o Graal hoje?... A pergunta já não sensibiliza quem detém o poder, o símbolo também perdeu sentido para ele… Desencantada (Max Weber, Marcel Gauchet, Eduardo Lourenço), a humanidade vive a crise a todos os níveis, incluindo o bélico mais trágico. Mas, sendo a crise um momento da mudança, aspiramos a um depois que nos traga o Graal, a pergunta e a resposta curativa da ferida aberta, que religue a virtù política e a virtù moral maquiavelicamente dissociadas…