Eu concordo, sem pestanejar com a famosa frase de Cervantes em Dom Quixote, popularizada na letra da canção Dom de Iludir de Caetano Veloso, de que [...]cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é, já que nossos sentimentos e emoções são muitas vezes indescritíveis, invisíveis e muito subjetivos. Porém, para mim, é quase impossível, tanto na minha vida privada quanto na profissional, não estar atento, sensível e, até mesmo, “forte” para interagir com aqueles que convivo, embora eu tenha as minhas delícias, além de inúmeras e secretas dores, que ainda tento encarar no divã do meu psicanalista. A vida é mesmo uma roda gigante, onde devemos nos sentar elegantemente, pois ela dará muitas voltas. Ora estamos com a energia lá em cima, ora estamos rastejando dentro de nós mesmos.
Há pouco mais de uma década, perdi uma amiga. Era uma das pessoas mais divertidas, munida de um discurso sagaz e alegre, mas que aos poucos foi atingida pelos infortúnios da vida. Perdeu o emprego, o namorado e a vontade de viver e, acabou se entregando para a tristeza. Seu corpo não resistiu e foi somatizando todas as suas dores, até que ela viesse à óbito por uma infecção pulmonar. Lembro-me do nosso último encontro, quando já morávamos em cidades distantes e fui visitá-la e já era possível perceber, suavemente, em seu olhar, a desilusão com o viver. Tentei alertar os amigos que viviam próximos e propor algumas coisas mesmo à distância, não tínhamos WhatsApp e o bate papo do Facebook ou o Messenger eram ferramentas mais comuns, acessadas apenas quando estávamos em casa, na frente de nossos computadores portáteis, na maioria das vezes. Foi assim que em um determinado dia, fiquei sabendo de sua despedida - as dores foram grandes e ela não resistiu.
Poucos meses atrás, comecei a receber mensagens de alguns alunos em minhas redes sociais, a primeira delas dizia algo do tipo: preciso te contar algo terrível, enquanto outras questionavam se eu sabia o que havia acontecido. Um aluno muito querido havia decidido nos deixar, parece que ele também não suportou as dores de ser e estar e resolveu adiantar seu expediente na terra. Procurei não saber como e, sabendo que ele zelava pela privacidade, não fiz nenhum tipo de postagem nas minhas redes sociais. Era a única coisa que podia fazer naquele momento para respeitá-lo, pelo pouco que o conhecia, além de sentir uma dor imensa dentro do meu peito.
Hoje, um aluno pediu para falar comigo em particular, começou tirando da pasta uma série de laudos médicos, quando me apontou para um deles no qual estava escrito: “tentativa de autoextermínio”. Por segundos, eu fiquei paralisado e só consegui ser o mais banal dos seres humanos e dizer: pare com isso. Em seguida, me mostrou as cicatrizes, marcas das tentativas de tirar a própria vida, narrou brevemente sobre a estada em um hospital psiquiátrico enquanto eu tentava pensar no que eu poderia dizer. Começamos a chorar, nos abraçamos e disse que estarei sempre ali por ele, para o que precisasse. Naqueles minutos, o que me incomodou foi o meu despreparo para encarar a dor do outro bem diante dos meus olhos, de forma explícita, como se fosse um pedido de socorro.
Eu sei que meus amigos e eu tentamos nos amparar em nossas dores, aquelas que deixamos vazar pela respiração, pelo olhar, pela postura ou em conversas regadas com bebida alcoólica, mas é um outro tipo de interação, diferente de estar na posição de professor e acessar involuntariamente a dor máxima do outro. Sei que existem muitos protocolos, muitos modos de cooperação que requerem uma formação para isso.
Embora sempre procure ser e estar sensível para o outro, eu me sinto frágil e vulnerável em situações para as quais não estou preparado. Por isso, não posso fazer valer os versos da canção de Hyldon, regravada pela banda Jota Quest: eu vou me esquecer de tudo/ das dores do mundo, mas quero saber quem fui, quem sou e quem posso ser não apenas no que se refere às minhas dores e delícias, mas quando sou convocado para acessar as dores e as delícias daqueles com quem convivo.