Dizer que a educação é um desafio pode ser o mesmo que verbalizar, na contemporaneidade, o antigo ditado chover no molhado, mas acredito que é preciso bater nesta tecla quantas vezes forem necessárias, pois realmente é uma peleja! Então, daqui do meu lugar de fala, nada confortável, formador de professores de linguagens de universidade pública brasileira, preciso desabafar, confessar, talvez até fazer meu mea culpa e seguir adiante naquilo que penso.
Ando muito incomodado com minha posição de formar professores para o presente e o futuro, me sentindo um tanto incapaz, desiludido, desanimado. Afinal, são inúmeros desafios diários, sejam eles consequências de parcas políticas públicas, tentativas de sucateamento da educação pública para favorecer o sistema neoliberal e as camadas mais privilegiadas da sociedade, uma aparente falta de interesse e agência de muitos licenciados, a burocracia estatal, as diversas tomadas de decisões de cima para baixo e assim vai. Porém, lá no fundo do meu ser, eu sinto algo que vibra me dizendo para ir em frente, mas carrego comigo, também, a preocupação trazida pelo baixo número de jovens interessados em serem professores, que conforme os dados mais recentes acerca do assunto, não mais que 4% dos jovens brasileiros teriam interesse em seguir a carreira docente.
Nessa toada, enfatizar que a educação pública brasileira, desde muito tempo, é o alvo, o “Judas”, a “Geni” - como se fosse uma instituição una, indivisível e ao mesmo tempo perecível, que pode ser achincalhada conforme os mais diversos interesses das mãos invisíveis do poder e discursos desmerecedores reproduzidos às pencas em redes sociais, me levar a crer na necessidade de levantarmos nossas bandeiras e nossos discursos a seu favor o tempo todo. Parece-me que se tornou um fenômeno perceptível até mesmo nos discursos naturalizados e reverberados por aqueles que dela usufruíram, na repetição ordinária do chavão: Ah, mas na escola particular é diferente!
Eu venho questionando, dialogando e problematizando com colegas sobre as ações que temos a obrigação de realizar em um mundo pós-isolamento causado pela pandemia e, também, acerca dos algoritmos. O perigo não está apenas na esquina das ruas e não podemos mais viver como nossos pais. Então, fico me indagando se quem compra esses despautérios não consegue parar por um segundo e pensar: como a educação é construída? O que é necessário para se colocar um professor formado com excelência em sala de aula? Por que as coisas mudam tão rápido? Essa última questão ficaria até mais próxima de alguns leitores se fosse reescrita da seguinte forma: Por que as coisas parecem líquidas? Assim, na referência a Bauman, que bebeu do marxismo, mas é útil para alimentar as engrenagens neoliberais contemporâneas.
Assim, daqui onde estou, quase invisível em um país de dimensões continentais, eu re-existo a cada dia quando ouço o relato dos alunos que tocam profundamente as entranhas e os emaranhados que me constituem como ser humano. Anualmente, quando novos acadêmicos ingressam na universidade na qual atuo, eu ouço diversos relatos que me provocam, inquietam e, acima de tudo, me acalentam. São relatos de alunos advindos da rede pública de ensino e exemplificam a magnitude de professores formados com excelência nas nossas universidades, demonstrando não apenas o conhecimento prático e teórico, mas também a sensibilidade e o afeto de olhar para cada um de seus alunos e abrir janelas para o mundo.
Um dia desses, um aluno disse mais ou menos o seguinte
eu nem sabia que havia curso de Letras, soube há pouco tempo, dei uma pesquisada na internet e vi que poderia ser uma possibilidade para aquilo que eu penso para a minha vida futura.
Em seguida, perguntei onde ele havia estudado, quem tinham sido seus professores. Para meu espanto, o aluno estudou em uma escola pública atrás, exatamente atrás do muro da universidade na qual eu trabalho, em uma escola onde realizamos diversas ações e atividades. O que me intrigou nesse relato foi o fato de que o nosso diálogo com a rede básica de educação parece não ser ainda eficaz, mas não é uma falha a meu ver, são consequências de uma sociedade maculada por reproduções de impossibilidades para os menos privilegiados.
Por isso, na minha construção de sentido, tudo o que tentamos fazer fora dos muros da universidade pode parecer, grosso modo, apenas alegoria. Aparentemente, na mente daqueles alunos que nos recebem nas escolas, seria algo do tipo: um pessoal veio aqui falar de umas coisas. Foi divertido, interessante!
A educação é um processo local e contextualizado, embora siga orientações nacionais, mas deve ser compreendida, examinada e aclamada no seu contexto, com uma participação ativa da sociedade e, principalmente, das famílias. É muito cômodo e fácil falar mal da escola pública, maldizer os professores, criticar desmedidamente uma categoria de trabalhadores, não é mesmo? É algo tão simples como ir ao Google e deixar uma crítica bem contundente a um estabelecimento comercial, já que alguém vai ler em algum momento e até mesmo concordar. Outra analogia pode ser feita quando reclamamos das políticas públicas do município onde vivemos sem nunca ter frequentado uma sessão de consulta pública sobre qualquer assunto da cidade onde se vive.
Por outro lado, existe um plano neoliberal e maquiavélico de minar estruturas consolidadas da educação pública brasileira, nas infiltrações sistemáticas e organizadas desde o golpe de 2015, seja pelo “oferecimento” de políticas educacionais para instituições que visam lucros, pelo desmantelamento do ensino médio nomeado como *novo", pela proliferação de escolas ditas bilíngues, aquisição de cursos de formação continuada pelas secretarias de educação, cursos que são promovidos ou organizados por instituições que visam lucros e não temos garantia dos quais são as intenções de muitas delas. No entanto, no que tange ao ensino público, os professores, os formadores, a escola em sua completude, são (ou parecem ser) os algozes desse plano sórdido das elites e, suas potências poderiam ser fomentadas pela sociedade ao redor, pelas famílias e pelos simpatizantes de uma educação gratuita de qualidade.
O Dasein do professor é alimentado pela vontade de alavancar as potências dentro daqueles que encontramos nas salas de aula, nos corredores dos ambientes educacionais e até mesmo no boteco da esquina, pelos relatos daqueles que foram alunos, pela esperança no olhar daqueles que chegam para o primeiro dia de aula e, por isso, é um elemento re-existente nos abalos sísmicos ou nos terremotos causados pelo poder.
Eu tenho consciência que este texto pode não alcançar quem deveria, mas me acalento com o fato de ter a possibilidade de deixar registradas minhas confissões, minha vulnerabilidade e minhas indagações, assim como não havia imaginado fazer tantas pausas durante a redação deste texto. No entanto, as contingências foram muitas, principalmente aquelas que se referem à educação. No período que o escrevia, uma professora foi assassinada por um aluno durante um ataque a uma escola em São Paulo, uma creche foi invadida e quatro crianças foram mortas em uma creche no estado de Santa Catarina. Além disso, tentativas de ataque foram desbaratadas em outros estados brasileiros.
Completando vinte e sete anos de docência, ainda tenho a esperança de me aposentar um dia, eu sei que todos os anos receberei novos alunos nas salas de aula da licenciatura, alguns cujos objetivos serão claros, outros que cairão de paraquedas, muitos da periferia, poucos privilegiados (afinal, poucos cidadãos privilegiados querem ser professor). No entanto, minha função será contribuir para que a formação desses indivíduos possa reverberar, no futuro, em possibilidades locais (para aqueles que são da cidade) e/ou em outras localidades (para aqueles que não são da cidade ou região), atento com o poder dos algoritmos e a fantástica inteligência artificial. Por fim, termino por aqui e deixo a seguinte pergunta: O quanto temos que correr como educadores?