Um minuto de silêncio pelos mortos / às vezes dura até tarde da noite.

(Wislawa Szymborska)

No telhado de uma escola em uma comunidade carioca, professores estendem uma faixa pedindo para que a polícia não atire e não mate. Em outra, na capital paulista, ela entra no pátio no horário do recreio causando medo. Mochilas penduradas na parede da sala sustentam o que era alarido infantil na creche municipal em Blumenau, onde o ataque a machadadas deixa crianças mortas e dá notícias do mortífero. Professora é morta a facadas, na frente da sala, em momento de trabalho.

Tais cenas, ocorridas na pandemia e nas últimas semanas, têm se acumulado e cristalizam pouco a pouco a normatização de sentidos tidos como possíveis de serem ditos e lidos, quais sejam, a relação direta entre escola e morte. Os nomes próprios mudam na roleta de histórias macabras que fraturam o direito à vida. À vida, o mínimo, e maior de todos. Nem os documentos internacionais que assinalam garantias de direitos à vida e à educação, nem os estatutos brasileiros de defesa da infância e adolescência barram o horror de a sala de aula se tornar palco de barbárie, e de crianças serem sumariamente executadas (ou ameaçadas) no lugar em que imaginariamente estariam protegidas e a salvo. O mal-estar está posto1.

Segundo Freud2, dizer do mal-estar significa enfrentar o sofrimento que

nos ameaça a partir de três direções: do nosso próprio corpo condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro.

Nesses termos, o contato com o outro é causa de diferentes ordens de sofrimento psíquico e impõe desafios a serem mediados e tensionados no espaço social por garantidas pactuadas na ordem da cultura. Ordem esta sustentada por bases simbólicas de acordos coletivos traçados na e pela língua, que – apenas eles – podem dar contorno à agressividade e à violência, e garantir modos de conviver em meio a contradições, embates e confrontos. O que dizer quando tais bases simbólicas são rasgadas e irrompe o horror do mortífero sem anteparo nenhum? Quando a crueldade se endereça para crianças sentadas em bancos escolares ou brincando durante o recreio no pátio de uma escola? As cores do inominável grifam a falta de respostas possíveis. O tropeço nesse horror produz efeitos de paralisação da fala e uma desorganização dos trilhamentos em que o sujeito possa dizer algo sobre isso, ainda que a mudez se imponha de saída e o silêncio grite. Sim, nesses casos, as palavras faltam.

Formalizações de Lacan3, ao longo do Seminário - Livro 7, indicam o real como o que existe de aberto, de faltoso, de hiante, no centro do nosso desejo. Isso porque há um objeto desejado pelo sujeito que foi perdido para sempre e não pode ser reencontrado. (...) Alguma coisa está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas esperando. (...) é esse objeto, Das Ding, enquanto o Outro absoluto do sujeito, que se trata de reencontrar. Reencontramo-lo no máximo como saudade.

Ao longo de outro Seminário – Livro 11, Lacan avança na direção de anotar algo que é da ordem do não-realizado (Lacan4), cuja materialidade se dá a ver em tropeço, desfalecimento, rachadura (...) dimensão de perda. Perda sinalizadora de um núcleo duro em que não cabe o simbólico, pois a ruptura, a fenda, o traço da abertura faz surgir ausência – como o grito não se perfila sobre fundo de silêncio, mas, ao contrário, o faz surgir como silêncio. O silêncio do impossível dizer já que nenhuma palavra consegue acertar ou tamponar o buraco. Há, assim, o oco fundante da constituição do humano (e da língua que lhe foi possível inventar); esse furo se alarga em situações bárbaras, deixando a palavra desarticulada e indiciária desse inominável do horror, como afirma De Sousa5:

não há esperança na barbárie. Cenas traumáticas nos paralisam e muitas vezes nos silenciam, mas é preciso encontrar as palavras que ainda não existem para tentar cercar esse inominável do horror.

A questão do real como impossível também foi explorada por um outro teórico que trabalhou nos entremeios das ciências sociais, linguística e psicanálise. Pêcheux6 marca que não descobrimos [...] o real: a gente se depara com ele, dá de encontro com ele, o encontra. Dar de encontro é uma ótima expressão para marcar o efeito de assombro do susto e do trombamento com o que aponta o real, no caso, de uma manhã escolar aparentemente normal com as mesmas rotinas de chegada, despedida dos pais, encontro com colegas, preparo dos trabalhos, no momento em que o atravessamento de assombro entra em rota de colisão com tudo isso e dá a ver pontos indicativos do inominável. Há aí um baque que reclama significação, mas nenhuma palavra parece servir ou dar conta de/para expressar o desespero e desamparo. Assim, há um impossível próprio à língua, seu traço mais genuíno de não dar conta de expressar, significar e dimensionar o real. Dias7 interroga:

Como levar em consideração a verdade, quando o tecido simbólico foi perfurado de tal maneira que passamos a ter de nos haver com o retorno dos infernos, ou seja, com tudo o que o ponto surdo até então havia mantido recalcado?

Esse fracasso de palavrar dialoga com as condições históricas dadas, por exemplo, pela pandemia e pelo retorno de discursos fascistas8 em diferentes países do globo, inclusive no Brasil. Se a primeira silenciou os movimentos do sujeito diante do impossível científico de um vírus a fazer morrer milhares de pessoas por dia em condições enigmáticas, o segundo produziu uma espécie de assombro nas formas sociais de relação com o outro, visto que o ódio e a estupidez impuseram-se como rotina e prática. Não é objetivo desse escrito avançar aqui, mas apenas pontuar como a historicidade de um tempo traumático atualiza efeitos de dor e sofrimento, recolocando a problemática do desamparo psíquico do sujeito (Birman9). O impossível segue a arreganhar os dentes, agora desdobrando-se ruidosamente no modo de atingir crianças e professores dentro de escolas.

De Sousa5 argumenta que:

pesquisando o perfil dos criminosos, fica claro que muitas dessas ações se alimentam de um culto à destruição já que se sentem identificados com ideias racistas, misóginas, homofóbicas, nazistas e fascistas.

Ou seja, dos onze ataques por ano contabilizados pela UNICAMP, seus executores apontam para a regularidade sinistra de identificação ao ódio e têm a deep web como local de circulação supostamente sem freio. Os atentados nas escolas visibilizam os trilhamentos desse ódio e impõe a mudez a famílias e à comunidade escolar, vulnerabilizando aquele que, para a maioria, é um precioso espaço de socialização e acesso à cultura. Por isso, mais que nunca, é preciso eticamente fazer isso falar.

Ora, sabemos pela noção de real que a língua é ferramenta imperfeita (Henry10) e, pelo quê, faltosa e opaca. Mas ela constitui o único modo de bordar, tecer e tracejar uma saída frente ao inominável; não é sem ela o desafio necessário a ser construído. Desse modo, apenas em seu corpo escorregadio podem deslizar as palavras capazes de elaborar o luto, de fazer barreira ao horror, de afirmar o efeito necessário à garantia e ao respeito de direitos humanos, vida e educação. Será preciso um esmerado trabalho de costura simbólica para unir as pontas e fios rotos pela barbárie, desfazer os nós sem brigar com os fios de vida, cuidar do arremate para que pontos e laços fiquem firmes e assegurar que escola, infância e adolescência sejam palavras potentes de bendizer.

Notas

1 Sousa, L. M. A.; Nagem, G. Nada foi o bastante para impedir: efeitos do assassinato de crianças no Rio. Stylus - Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 40, p. 70-92, 2022.
2 Freud, S. O mal-estar na civilização In: O futuro de uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro, Imago, p. 85, 1996.
3 Lacan, J. Seminário, Livro 7 – A ética da psicanálise. p. 104, ([1959 - 1960]). Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução Antônio Quinet. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, p. 63, 2008.
4 Lacan, J. Seminário, Livro 11 – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. p. 28, ([1964]). Tradução M. D. Magno. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1973.
5 De Sousa, E. L. A. Silêncio, esquecimento e atrocidade. Porto Alegre, Zero Hora, p. 15, 8 e 9 de abril de 2023.
6 Pêcheux, M. O discurso – estrutura ou acontecimento. ([1983]). Campinas, Pontes, p. 29, 1997.
7 Dias, M. M. O discurso da estupidez. São Paulo, Iluminuras, p. 41, 2020.
8 Piovezani, C.; Gentile, E. A linguagem fascista. São Paulo, Editora Hedra, 2020.
9 Birman, J. O trauma na pandemia do coronavírus – suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. 13, 2021.
10 Henry, P. A ferramenta imperfeita. Campinas: Unicamp, 1992.