Embora estejamos num momento em que a poeira parece ter baixado e o Supremo Tribunal Federal está fazendo a sua parte, nunca é demais refletir.

O que leva aquele que se diz patriota a destruir o patrimônio público, que nada mais é do que uma extensão dos bens de sua própria casa? Seria um simples ato de ignorância? (Eu faltei às aulas de História do Ensino Fundamental, não sabia que aquilo era tão valioso!) Uma atitude de rebeldia e ao mesmo tempo uma manifestação de prazer do infrator? (Deixei-me tomar por um sentimento primitivo de fúria e vingança face à minha incapacidade de lidar com a frustração pelo meu candidato ter perdido as eleições) Ou ainda, de submissão e fidelidade? (Certamente estou realizando o desejo daquele a quem sigo e obedeço e a quem considero um mito).

Uma outra possibilidade seria o fato de, por haver se irmanado a outrem em prol de algo (Alguém disse que isto deveria ser feito para que aquele que queríamos se mantivesse no poder), o respaldo do grupo muda toda a configuração das coisas. Um dos primeiros efeitos de se imiscuir em uma “massa” consiste em que o indivíduo adquire, unicamente por considerações numéricas, um sentimento de poder invencível que lhe permite render-se a instintos que, se estivesse sozinho, teria compulsoriamente mantido sob coerção. Ficará ele ainda menos disposto a controlar-se pela consideração de que, sendo um grupo anônimo e, por conseguinte, irresponsável, o sentimento de responsabilidade que normalmente controla os indivíduos, desaparece inteiramente.

Existe ainda a noção de que “Se estão todos fazendo o mesmo que eu, então está tudo certo!”. Neste caso, o indivíduo sente-se a vontade para fazer o que quiser, pois a infração cometida e diluída entre milhares parece decair em seu potencial de destrutividade e tudo se torna uma grande diversão (pessoas comemoravam seus atos de vandalismo, filmavam a si próprias e postavam nas redes orgulhosas). Neste sentido, vale salientar ainda que a horda não raciocina. Age simplesmente por impulso, com a tendência de transformar imediatamente as ideias sugeridas em atos. No grupo, o indivíduo sente-se além de poderoso, invulnerável, como se tivesse neutralizado todas as suas fraquezas enquanto indivíduo humano.

Assim, naquele 08 de janeiro do corrente ano, ante meus olhos estarrecidos e na minha mais profunda perplexidade, vi cenas que nunca imaginei acontecerem no país democrata que conheci: atos de vandalismo e depredação ocorridos na Praça dos Três Poderes em Brasília, quando bolsonaristas extremistas invadiram as sedes do Congresso, do Supremo Tribunal Federal e do Palácio do Planalto.

A mente daqueles que são ‘pobres de espírito’ (se é que podemos chamar assim) constitui um terreno fértil para ervas daninhas ali vicejarem de forma que, desprovidos de espírito crítico, se deixam levar por falsos ‘influencers’.

Freud, em seus estudos sobre a psicologia de grupo e análise do ego, ressalta a descrição de Le Bon sobre a mente grupal :

“Sabemos hoje que, tendo chegado a uma condição em que, por diversos processos, o indivíduo tenha perdido inteiramente sua personalidade consciente, obedece a todas as sugestões do operador que o privou dela e comete atos em completa contradição com seu caráter e hábitos. Desta forma, estando ele imerso por um certo lapso de tempo em um grupo em ação, cedo se descobre – seja devido à influência magnética emanada pelo grupo ou por alguma outra razão ignorada – num estado mental que se assemelha muito ao estado de “fascinação” em que o indivíduo hipnotizado se encontra nas mãos do hipnotizador. A personalidade consciente desvaneceu-se inteiramente; a vontade e o discernimento se perderam. Todos os sentimentos e o pensamento inclinam-se na direção determinada pelo hipnotizador” (p.99).

Le Bon apud Freud (1980) acrescenta que no caso de um indivíduo que é membro de um grupo, enquanto algumas faculdades são destruídas, outras podem ser conduzidas a um alto grau de exaltação. Sob a influência de uma sugestão, o indivíduo empreenderá a realização de certos atos com irresistível impetuosidade, visto que, sendo a sugestão a mesma para todos os indivíduos do grupo, ela ganha força pela reciprocidade.

Vale salientar ainda que neste caso, o cerceamento normalmente imposto pelo superego para a vida em sociedade parece ter-se desvanecido completamente, e o indivíduo considera normal e até exalta, suas ações de destruição do patrimônio da própria nação. Pelo simples fato de fazer parte de um grupo organizado, um homem desce vários degraus na escada da civilização, tendo sua capacidade intelectual reduzida. Isolado, pode ser um indivíduo culto; numa multidão, é um bárbaro, ou seja, uma criatura que age pelo instinto. Possui a espontaneidade, a violência, a ferocidade e também o entusiasmo e o heroísmo dos seres primitivos. Assim, parece haver uma nítida regressão da função civilizatória do indivíduo, visto que, tendo neutralizado o superego, o mesmo passa a funcionar a plenos pulmões sob o domínio do Id. Do ponto de vista da psicanálise, o Id é uma das instâncias da mente, onde ficam armazenadas nossas pulsões, nossa energia psíquica, nossos impulsos mais primitivos. Guiado pelo princípio do prazer, não há para o Id nenhuma regra a ser seguida: tudo o que interessa é a vazão do desejo, a ação, a expressão, a satisfação (além da quebradeira geral, houve até quem evacuasse no Planalto).

Estando assim regredidos, fortalecidos e protegidos pelo cordão de isolamento do grupo, um profundo sentimento de onipotência parece ter tomado conta de todos. “O Brasil é nosso!”. O eco desta afirmação já reverberava em meus ouvidos mesmo antes da data de 08 de janeiro, em grupos de whatsapp, quando o tráfego nas rodovias foi obstruído por manifestantes golpistas.

O que significa “O Brasil é nosso!”? Uma mostra de um patriotismo exacerbado? Ou supostamente que, na nossa onipotência entendemos que podemos subverter a ordem vigente e fazer o que quisermos, inclusive instaurar o caos? Neste caso, o ego coletivo parece ter se expandido demasiadamente pelo contágio e reciprocidade, o que levou à negação completa da famosa expressão: “o meu limite termina onde começa o do outro”. Nas entrelinhas desta frase também há um outro que está sendo rechaçado (‘O Brasil é nosso e não deles...’), reproduzindo a profunda polarização que tomou conta do país e se acirrou no segundo turno das eleições.

As reflexões até aqui referem-se a quem praticou os atos de vandalismo, mas não podemos nos esquecer de quem os financiou, de quem os idealizou e daqueles que se mantiveram coniventes.

Certamente que, quem planeja algo usa suas faculdades mentais de maneira diferente. A pessoa tem claro para si os objetivos que deseja atingir (chegamos a ter uma minuta esboçada do golpe de estado) e usa outras pessoas para a consecução de seus planos manipulando suas mentes. Igualmente não se deixa levar cegamente por impulsos instintivos, mas mantém a mente suficientemente ‘fria’ e clara para raciocinar e articular. Embora não agindo diretamente, o discurso do ódio emana pelos seus poros, sendo um forte instrumento de manipulação das massas. Da mesma forma, quem financiou, além de compactuar com a ideologia em questão e obviamente possuir muitos recursos, tinha objetivos claros a atingir.

Talvez a atitude de quem se manteve conivente tenha sido a mais vil de todas, pois se por um lado assentiu e permitiu agitação em suas cercanias, por outro, não moveu uma palha para agir de acordo com o que todos esperavam. Ou seja, instalou-se confortavelmente em cima do muro.

Para finalizar, de diversos ângulos e olhares distintos, está-se falando de uma atitude ‘perversa’ no sentido literal da palavra já que com a própria ação e ideologia, bolsonaristas agiram e/ou interferiram para a destruição de algo ou de outrem.

Todos aprendemos muito cedo o sentido da palavra destruição e também aprendemos que não devemos fazer para o outro o que não queremos para nós mesmos.

Se teimosamente nos recusamos a agir conforme os pressupostos desta lei universal, agruras fatalmente nos esperarão até que possamos aprender a lição.

Retiro-me deixando o leitor com uma pergunta para reflexão: O que é ser patriota para você?

Referências

Freud, S. Psicologia de grupo e análise do ego, ed. Standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago Editora, vol. XVIII, pp. 87-179, Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, 1930/1980.