A floresta amazônica perdeu uma área de mais de 2 mil campos de futebol por dia nos primeiros cinco meses desse ano. Os dados são do Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD), instituto que monitora a Amazônia desde 2008, segundo o qual foram derrubados 3.360 km² de mata nativa.
Representantes do Esporte Pela Democracia e do Movimento indígena: Walter Casagrande Jr. (ex-jogador de futebol e comentarista esportivo), Sônia Guajajara (ativista indígena e ambientalista), Célia Xakriabá (ativista e educadora indígena), Moara Passoni (roteirista e diretora de cinema), Nara Chaib Mendes (atriz e escritora), Bruna Marcatto (produtora cinematográfica), João Rosa (ator, mestre em futebol e poesia), Mônica Saraiva (assessora de imprensa), Elisângela Guanaira (produtora cinematográfica), Ana Mesquita (nadadora e escritora), Gustavo Pizzi (diretor de cinema, roteirista e produtor ), Myriam Pereira (assessora de imprensa), Irlana Cassini (produtora cultural), Wallison Amin (treinador e professor de Pilates) e Graci Guarani (roteirista e diretora de cinema), estão organizando uma partida de futebol em uma área que sofreu degradação ambiental como forma de chamar a atenção para a destruição contínua das florestas do Brasil A partida será no dia 23 de setembro. Ao final do jogo, os participantes contribuirão para o reflorestamento. Cada jogador plantará uma semente de uma árvore no campo devastado.
Sônia Guajajara, Célia Xakriabá, Walter Casagrande Jr. e Moara Passoni conversaram com a MEER sobre a partida e como o mundo deve agir neste momento contra a necropolítica do Brasil que mata não “só” o meio ambiente, mas aqueles que resistem contra a destruição da floresta.
Sônia Guajajara é coordenadora da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) para a Amazônia. Ela também é membro da ANMIGA – Articulação Nacional de Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade, organização de referência nacional e internacional que mobiliza mulheres indígenas de todos os biomas do Brasil. Sônia foi eleita pela revista Time em 2022 como uma das 100 pessoas mais influentes do mundo.
Célia Xakriabá é uma educadora indígena e ativista do povo Xakriabás do Brasil. Ela se tornou a primeira pessoa de ascendência indígena a representar os brasileiros nativos na Secretaria de Educação do Estado de Minas Gerais.
Walter Casagrande Jr, um dos maiores artilheiros da história do futebol brasileiro, também foi um dos líderes da Democracia Corinthians, movimento que revolucionou o futebol brasileiro no auge da ditadura militar no país.
Moara Passoni é roteirista e diretora de cinema, formada em Sociologia, Antropologia e Ciências Políticas pela Universidade de São Paulo (USP), além de Filosofia e Estética pela Paris 8, mestre em Cinema e Documentário pela UNICAMP, Mestre em Roteiro-Direção na Columbia University/NY.
Como você acha que uma partida de futebol em uma área devastada pode ajudar os povos da floresta e o meio ambiente?
Sônia Guajajara: Esse patrimônio brasileiro que é o futebol, que mobiliza tantas paixões em nosso povo, pode deixar entrar em campo a defesa da Mãe Terra e dos Povos Indígenas. Não é a primeira vez que o futebol se coloca ao lado das lutas populares. Hoje, os ataques aos nossos Povos e aos nossos territórios coloca a agenda indígena no centro do debate nacional e internacional. É para essa situação urgente que queremos chamar a atenção com este jogo. Queremos que os apaixonados pelo futebol, independente da cor da camisa, saibam o que está acontecendo a mando de Bolsonaro. Quem ama o Brasil precisa estar conosco na defesa de nossas florestas e dos nossos Povos Originários.
Você acha possível transformar um “predator” (garimpeiros, traficantes de peixes e madeiras) em “amigos” da floresta?
Sônia Guajajara: Temos que acreditar na capacidade de transformação de todos. E isso nós fazemos reflorestando mentes e conquistando o coração do nosso povo. Muita gente que está nessas atividades predatórias só vai parar nisso por falta de oportunidade. Gerar oportunidade e conscientizar o povo de que sem preservar o meio ambiente, não existe futuro pra ninguém.
Muito se fala sobre a causa indígena, especialmente durante o governo Bolsonaro, nos últimos quatro anos. Diversas invasões, ataques a territórios já demarcados, além de assassinatos, inclusive de crianças indígenas. Como você acha que o futebol pode contribuir para uma maior conscientização em relação, principalmente, à causa da demarcação de territórios indígenas e da exploração ambiental predatória como o tráfico de peixes, o corte de árvores e o garimpo ilegal?
Sônia Guajajara: Chamar a atenção para a destruição sem igual que este governo tem causado em nossos territórios, em nossos biomas, é o primeiro passo para conscientizar as pessoas sobre a urgência da defesa do meio ambiente. Escolhemos uma área devastada para mostrar ao Brasil e ao mundo que Bolsonaro é o pai da destruição.
Walter Casagrande Jr: Sempre tive a compreensão da importância do futebol no Brasil, sempre tive. “Magrão” (Sócrates, ex-jogador do Corinthians e da seleção brasileira, um dos fundadores da Democracia Corinthiana) sempre me disse: “Big” (apelido do Casagrande), a profissão mais política do Brasil, tirando os políticos de Brasília, é o futebol. O futebol é totalmente político”. O futebol no Brasil é como uma rede social. Por exemplo: você dá uma entrevista agora e pronto! Ele se espalha para o mundo inteiro a uma velocidade inacreditável. Olha, quando você fala: vai ter um jogo de futebol ao vivo, às 11h, muitas pessoas vão sentar para assistir não só pela preocupação com o meio ambiente, mas porque é uma partida de futebol. O futebol é o caminho mais rápido para chegar à sociedade, por isso escolhemos um jogo de futebol.
Célia Xakriabá: Nós somos a defesa, os defensores da humanidade. Nossa intenção é gritar no Brasil e ecoar pelo mundo. Como os jogadores, precisamos de oxigênio, precisamos da floresta em pé. Nós, povos indígenas, fomos os ministros do Meio Ambiente durante esses 4 anos de total ausência de um governo ambiental. É importante valorizar os povos indígenas e sua cultura, mas para manter a floresta, os biomas em pé, temos que manter os corpos e as vozes de quem mantém a floresta viva, não há outra alternativa.
Casagrande, como foi sua abordagem com as lideranças indígenas?
Walter Casagrande Jr: Ao longo dos anos, formei um grupo antirracista no próprio dia da morte de George Floyd. Fiquei indignado, vi todas as manifestações e pensei: “Tenho que fazer alguma coisa, não posso ficar aqui sentado sem fazer nada”. E aí eu criei um grupo chamado “Esporte pela Democracia” que existe até hoje com cineastas, advogados, jornalistas, esportistas, várias pessoas, entre elas a cineasta, roteirista Moara Passoni, e as coisas começaram a ser discutidas nesse grupo. A Moara me apresentou as causas e algumas das lideranças indígenas mais importantes do Brasil, como a Sônia Guajajara e a Célia Xakriabá. As lideranças indígenas estavam pensando, tendo ideias, para fazer algo mais. As pessoas que vivem nas cidades pensam que os indígenas vivem apenas para caçar e comer e não têm outras atividades diárias. Na realidade isso não é verdade! Eles estudam, têm escolas e praticam muitos outros esportes, além de muitas outras atividades.
Eles preservam as florestas para a humanidade, por exemplo...
Walter Casagrande Jr: Exatamente, o trabalho principal deles é esse. É um tipo de profissão. Qual é a profissão dos indígenas? Manter as florestas, o ecossistema em harmonia.
Célia Xakriabá: Entendendo que não somos nem 1% da população brasileira e somos apenas 5% da população mundial, tendo em vista que 80% da biodiversidade é protegida por povos indígenas. É um compromisso humanitário, porque só quem sabe ser bicho, quem sabe ser semente, terra e árvore, sabe ser humano. Quando conversei com o Casagrande, disse que embora não sejamos reconhecidos como os melhores artilheiros, embora os povos indígenas tenham muitos grandes jogadores de futebol (ambos os sexos), não somos reconhecidos como grandes artilheiros, mas somos os melhores zagueiros porque defendemos o território e a vida na Terra.
Moara Passoni: Mais uma vez lembrando o que a Célia acabou de dizer: 80% da biodiversidade do planeta é protegida por povos indígenas. Recentemente António Guterres (Secretário Geral das Nações Unidas) disse que a humanidade enfrenta um ‘suicídio coletivo’ por causa da crise climática, mas temos uma escolha: “Ação coletiva ou suicídio coletivo”. Está em nossas mãos. O assunto é urgente: se os indígenas desaparecem, nós desaparecemos também. Neste jogo não haverá vencedores, todos perderemos.
Como você acha que essa partida dará mais visibilidade à causa indígena e ambiental?
Walter Casagrande Jr: Assumi dois compromissos com os povos indígenas. A primeira é: eventos para os povos indígenas e a segunda: visibilidade. Foi isso que eles pediram: precisamos de visibilidade. Eu estava um pouco preocupado porque antes eu estava restrito a apenas uma emissora de TV. Eu tinha um contrato de exclusividade com a TV Globo. Eu não conseguia falar com outras emissoras de TV e outras mídias, mas agora estou fora da TV Globo, posso falar com outras plataformas de mídia e acredito que a visibilidade será muito maior. Estamos abertos a quem quiser fazer a cobertura, quem quiser ir lá e fazer um mini-documentário pode ir, quem quiser filmar desde o início da demarcação do campo será muito bem-vindo.
Célia Xakriabá: Uma partida importante está começando e queremos que as pessoas se orgulhem não só de vestir a camisa verde amarela (Seleção Brasileira), mas queremos que as pessoas se orgulhem de vestir a camisa com as cores do urucum e o genipapo, orgulho de vestir a camisa em defesa da Terra, que tenham orgulho de usar a camisa verde com a onça em defesa do nosso meio ambiente, orgulho de usar o cocar. Precisamos reconhecer que antes desse Brasil da Coroa existe o Brasil do cocar. Queremos esse cocar de pé. Nossa luta é fazer cumprir as leis sociais que já existem. Essas leis foram feitas para nos proteger. Mas neste momento no Congresso Nacional há mais de 250 projetos de retrocesso, enfraquecendo a legislação ambiental territorial. O planeta B não existe. A Terra não existe apenas para ser explorada. Este território precisa ser cuidado. Nós somos o próprio ambiente. Não haverá democracia sem reconhecer a importância da demarcação dos territórios indígenas. Nossa luta é pela vida, pela humanidade. Somos a última geração que pode fazer algo para deter as mudanças climáticas.
Você acha que esse jogo de futebol chamará a atenção? Mudará as mentes e os corações das pessoas?
Walter Casagrande Jr: Acredito que todos saberão o que está acontecendo! Mudar radicalmente a cabeça das pessoas numa estrutura da sociedade brasileira que vem de décadas e décadas com desleixo com a Amazonia, é difícil de mudar de um dia para outro. Muita gente não sabe o que está acontecendo, muita gente acha que é mentira o que se fala sobre o desmatamento que está acabando com a Amazônia, muita gente acha que é exagero dos jornalistas falando isso. Esse jogo de futebol no dia 23 de setembro, vai escancarar a realidade. Os bolsonaristas não vão querer ver porque eles não se importam com isso, mas aqueles que gosta do esporte e se interessam pela causa social do pais, quem tem um pouco de dúvida, vai querer ver. Terá gente que vai querer ver para saber qual é a dos indígenas, o que está acontecendo e ai acho que vamos conseguir plantar uma sementinha na cabeça das pessoas.
Célia Xakriabá: Eu já disse que a intemperança é um dos problemas da humanidade. A cada dia o planeta fica mais quente, está em convulsão. Dia após dia o coração das pessoas está ficando mais frio, estamos comprometidos com a importância de resfriar o planeta e aquecer o coração das pessoas.
Moara Passoni: A missão de reflorestar mentes é uma das bandeiras indígenas. Sônia Guajajara e Célia Xakriabá participam do projeto Jornadas Indígenas, que tem justamente essa ideia de promover ações para refletir sobre a importância dos Biomas e territórios em todo o Brasil. Precisamos, definitivamente, de novos paradigmas para pensar o mundo, o nosso século. Acredito que no nível simbólico pode mudar muito. Porque o que estamos vendo na escalada da violência no Brasil, no discurso de ódio, sem dúvida, estimula e libera mais ainda a violência. E neste caso estamos fazendo um evento que é o oposto disso e que é lúdico, estamos jogando pela demarcação indígena. A dimensão simbólica disso é muito forte. As coisas estão acabando, as pessoas estão exaustas. De acordo com levantamento divulgado pelo Datasus (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde), o Brasil enfrenta uma “segunda pandemia” na saúde mental, com uma multidão de pessoas deprimidas e ansiosas . Os números de suicídios estão aumentando como nunca antes. Em um país assolado pela tristeza e depressão, acredito que um jogo de futebol, por exemplo, pode mudar muito.
Você acha que perdemos o elemento lúdico?
Moara Passoni: Não sei se perdemos o elemento lúdico. Imagino que não. Mas acho que quando priorizamos a raiva e a competição a todo custo sufocamos a dimensão lúdica das coisas, começamos a perder a dimensão, a idéia de que podemos construir coisas novas juntos. Estamos todos no mesmo barco, o planeta vai acabar não só para os indígenas, mas para o mundo inteiro. Neste jogo que estamos organizando há vários elementos lúdicos. Por exemplo: a bola será pintada com o mapa do globo, a bola será o planeta no campo. O goleiro da equipe da Terra estará vestido com as cores do fogo, na floresta, ou seja, a equipe da Floresta terá que jogar contra o fogo nas matas. O goleiro do time Floresta estará vestido como uma mineradora, ou seja, o time da Terra terá que jogar contra as mineradoras. A idéia é que todos estejam jogando no mesmo time, jogando pela demarcação indígena, estamos jogando pela Terra.
Haverá alguma ação no final da partida no campo devastado?
Walter Casagrande Jr: Faz parte do evento plantar sementes de árvores no campo. Da mesma forma que essa partida de futebol tentará colocar a semente da preservação na cabeça e no coração da sociedade brasileira e mundial.
Célia Xakriabá: Não se trata apenas de reflorestar hectares. O mais importante é essa ressignificação, a retomada do princípio de humanidade, de nossas responsabilidades compartilhadas. Então, jogar neste campo tem esse significado: jogar pela mesma causa que é pela vida neste planeta.