Todos os dias o sol se põe com sua exuberante pintura e todos os dias ele exibe por excelência uma pintura diferente. Desse mesmo jeito é a tradição. Sempre estamos ouvindo a palavra tradição pois ela remete ao passado, num presente que espera por um futuro próximo. O que seria então a tradição? Seria o universo das máscaras existentes nos folguedos do nordeste do Brasil? Seria as incelenças cantadas pelas cantadeiras de almas que depositam sua dimensão de fé? Seria as superstições e crenças existentes nas orações que o povo reza? Estaria no preparatório de chás e comidas de um povo? Ou seria o refinamento das mugangas, entremeios realizados nos folguedos do nordeste do Brasil? Estaria impregnado no imaginário das narrativas pelas lendas e mitos de um povo? A tradição guarda ou transforma? Digamos que os mistérios permeiam o universo popular, há uma energia cósmica que acentua a fé do povo reavivando o rito e o sagrado.
Para tanto, utilizaremos como metodologia ou melhor privilegiamos a metodologia ligada à sociologia do cotidiano e sociologia do efêmero1. Método utilizado durante algumas entrevistas realizadas na feira livre do município de Carpina em Pernambuco. No decorrer das entrevistas com os feirantes sobre o imaginário existentes em uma feira livre popular pude perceber que o roteiro de entrevistas não fornecia os resultados devido às respostas dos feirantes serem monossilábicas. Foi então que surgiu a pergunta – Conte o Seu Dia?
Daí então, os feirantes começaram a soltar o verbo, e numa narrativa melancólica, histórias do dia a dia entre a lógica e a estética do mercado e da vida surgiam para enfeitar o universo popular. Reparem, os feirantes confundem trabalho com a sua vida ou melhor fazem da vida seu trabalho. Acreditamos que a tradição seja a aura do imaginário e o cotidiano é onde ela se manifesta. A tradição está envolvida nas brincadeiras das crianças, por isso os brincantes, os fazedores de cultura, brincam e por sua vez fazem a ponte com o sagrado. É na brincadeira que nos aproximamos de Deus. Por isso, as crianças trazem o envolvimento com a aura do imaginário pela transparência do mundo do faz de conta.
Isso nos faz pensar, que a tradição seja um varal de saberes existente no cosmo do sagrado. Assim, quem sabe dizer onde se esconde o tempo? Só pode ser na tradição, concordam?
Para isso, utilizaremos a metáfora do fio de Ariadne, a tradição seria um fio aqui relatado pelo varal de saberes no cotidiano das culturas populares. Ou seja, a tradição perpassa o tempo sem perder o fio.
Para enxergarmos o tempo, devemos aprender a ouvir os mestres da cultura popular e do folclore. Os mestres criam e conduzem a sua tradição.
Vejam o Mestre Bonequeiro Miro2 de Carpina de Pernambuco que diz que "a tradição é aquilo que começa e fica." Em sua dimensão de fé e alegria ele diz que devemos aprender com as nuvens e as estrelas. Já o Mestre Dodô3 do Reisado São Francisco de Juazeiro do Norte no Ceará diz que "a tradição é uma coisa que vem das antigas, qualquer uma coisa que venham dos velhos aos jovens de hoje é tradição." Já o brincante Serginho da Burra4 do município de Goiana de Pernambuco diz que "tradição é tudo aquilo que é preservado na sua origem."
Digamos que nas comunidades domésticas, a tradição é nutrida de saberes entre a fronteira da fé e do tempo.
No universo das máscaras tradicionais, o tempo é cíclico, cumulativo e periodicamente renovado. A contemporaneidade não exclui o passado, pelo contrário, o inclui, e modifica-o. Neste entendimento a revisitação do passado funciona como uma prefiguração do futuro.5
Precisamos aprender a fazer a leitura dos espaços do sagrado, que em seu cotidiano refletem o rito fotografando a tradição.
Da mesma maneira que, na cena popular tradicional o tempo é mágico, o espaço também é concebido como um microcosmo, portanto a reprodução do espaço sagrado. Como tal, ele é uma reconstituição do templo com suas aberturas e entradas, seus altares e portas correspondentes aos quatros eixos do mundo, assentado no mastro imaginário.5
No mesmo sentido, a tradição “deve ser a repetição de atos divinos”5, onde há o rito que deve conter a sua origem. Digamos que a tradição embarca numa constante sensação de sonho. Por sua vez, a criança sonha e os brincantes com suas manifestações reafirmam a brincadeira alimentando essa sensação.
Como diz a Mestra Dona Marinez6 do coco de roda Frei Damião Linda Flor de Juazeiro do Norte, Ceará, “Eu sou rainha de mim mesma”. Ela, ao mesmo tempo que vivencia a brincadeira do coco, reaviva o encontro, as relações sociais.
O Carlos Gomide da família Carroça de Mamulengos diz que na tradição há solidariedade, comunhão, amorosidade.
Os brincantes são carregados de afetos como afirma a socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz. Realmente, os brincantes fazem a ponte com o sagrado atreves do afeto.
Debruçar na tradição é trazer o inconsciente coletivo de um povo narrado por Carl Jung em o homem e seus símbolos e Joseph Campbell em A máscara de Deus, ou seja, é trazer a dimensão do homem com a natureza e com o divino.
Assim, para que haja uma sinergia com o mundo, com a natureza não podemos abandonar a nossa pureza, devemos sentir para responder. E é isso que os brincantes fazem. Como diz José Jorge de Carvalho é o pensar, sentir e fazer ao mesmo tempo. Por isso, mais uma vez afirmo que devemos ser leitores da tradição, porque há nas manifestações populares uma comunicação com o universo e com os espíritos dos seres.
Pela festa popular, a comunidade se protege do mundo físico ameaçador, refugiando-se na tranquilidade do campo sagrado. Sua necessidade mostra a insatisfação do homem com o mundo cotidiano, que precisa de outra dimensão da realidade, onde possa sonhar e viver a embriaguez do delírio.5
Então, a tradição é como nas obras de Marc Chagall uma eterna sensação de sonho.
1 Termo criado pelo Doutor e professor Wellignton Pereira da Universidade Federal da Paraíba para se referir às criações e recriações existentes nas culturas populares.
2 Artesanato de Pernambuco.
3 Mestre Dodô.
4 Serginho da Burra.
5 Barroso, Oswald. Máscaras: do teatro ritual ao teatro brincante. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2019, p. 27-29; p.59.
6 Mestra Dona Marinez.