A pergunta mais radical que podemos imaginar pode formular-se assim: por que é que existe o ser em vez do nada? Na filosofia ocidental esta pergunta foi feita por Leibniz na Teodiceia, mas está igualmente presente nas filosofias orientais, tanto na indiana como na chinesa. A radicalidade da pergunta reside em que, sendo aparentemente tão simples, não é possível dar-lhe resposta. Não me detenho nela, mas numa outra, do mesmo calibre, que se me afigura mais produtiva: por que é que existe a luz em vez das trevas?
Pode pensar-se que esta pergunta é uma outra maneira de formular a anterior, já que as trevas, a escuridão, são o nada. Só não será assim para as pessoas cegas para quem a escuridão é tudo, sendo a partir dela que constroem corajosamente a luz nas sua vidas. Mas mesmo para as pessoas que veem, o nada das trevas ou escuridão é um nada pleno de sentidos e conteúdos, que variaram ao longo da história e variam hoje segundo os contextos. A escuridão tanto pode significar o medo de algo no escuro como o medo da escuridão. A escuridão tanto nos pode meter medo como nos pode proteger, tanto nos pode condenar como absolver. E, reciprocamente, o mesmo sucede com a luz ou a claridade. A divindade tanto pode ser a luz plena como a escuridão plena. A escuridão tanto pode ser o horror como o êxtase, tanto evoca a cegueira como evoca diversas visões.
Em face desta diversidade e ambiguidade proponho-me analisar três contextos diferentes: o pensamento religioso e laico; o racismo, o sexismo e as geografias da luz e da escuridão; as novas escuridões e as novas cegueiras. Neste texto, analiso o primeiro contexto, deixando os restantes para próximo texto.
O pensamento religioso e laico
A oposição entre as trevas e a luz e o trânsito de uma para outra está presente em todo o pensamento antigo, laico ou religioso. Pode ler-se na Bíblia: “E disse Deus: ‘Haja luz’. E houve luz. Viu Deus que a luz era boa, e separou as trevas da luz; e à luz chamou dia, às trevas, noite. Assim se fez tarde e depois se fez manhã: o dia primeiro” (Génesis 1:3-5).
E no Evangelho de São João escreve o apóstolo que Jesus de Nazaré proclamou: “Eu sou a luz do mundo. Quem me seguir não andará na escuridão mas terá a luz do mundo” (Jo. 8:12).
No crepúsculo desta longa tradição, Martin Luther King Jr. exortava assim os seus contemporâneos: “Cada pessoa deve decidir se vai caminhar na luz do altruísmo criativo ou na escuridão do egoísmo destrutivo”. A verdadeira escuridão não era a da pele, mas a do racismo.
Na alegoria mais famosa da cultura ocidental, a Alegoria da Caverna, Platão, na República (514a-520a), imagina os humanos acorrentados no interior de uma caverna e virados para uma parede. No exterior há uma fogueira e entre ela e a entrada da caverna circulam pessoas com objectos. Os seres humanos presos na caverna não veem mais que as sombras dos objectos e tomam-nas por realidade. Um deles sai da caverna e, depois de se habituar à luz do sol, vê finalmente a verdadeira realidade dos objectos cujas sombras vira antes projectadas na parede da caverna. Regressa à caverna, conta o que viu, mas os seus companheiros não acreditam e ameaçam matá-lo. Com esta alegoria, Platão pretende mostrar a oposição entre as falsas crenças e o verdadeiro conhecimento. Nos séculos posteriores, esta alegoria e a metáfora da luz continuaram a ser usadas de múltiplas formas.
No pensamento oriental, chinês e indiano, as metáforas conceptuais são distintas, mas a relação entre a luz e escuridão persiste. Confúcio (551 AC-479 AC) incita à boa conduta exortando os seguidores a acender uma vela em vez de insultar a escuridão, ao mesmo tempo que lhes assegura que nem toda a escuridão do mundo é capaz de apagar uma vela. Séculos mais tarde, um discípulo dele, o neoconfucionista Wang Yangming (1472-1529), considera que o conhecimento do sábio é como o sol num dia sem nuvens, o conhecimento da pessoa de bem, como o sol com algumas nuvens, e o conhecimento da pessoa estúpida, como o sol num dia escuro e triste. Para o Budismo a metáfora da luz e da iluminação é igualmente importante, mas a luz é aqui sobretudo a luz interior que torna possível o auto- conhecimento.
No pensamento e religião islâmicos, a conexão conceptual entre a luz e a iluminação como metáforas do aprofundamento espiritual está igualmente muito presente. Atribui-se ao Profeta Maomé o dito “o conhecimento é a luz”; e no Alcorão a luz da revelação é contrastada com a escuridão da falsidade. O Nicho das Luzes, de al-Ghazali (1056-1111), é o tratado mais conhecido sobre a metáfora da luz no Islão, mas al-Suhrawardī (1154-1191) é quem oferece a hermenêutica mais complexa da luz ao ponto de inspirar uma nova escola de pensamento, a Escola da Iluminação.
O mais importante em al-Suhrawardī é o modo como supera as dicotomias da filosofia grega, incluindo a dicotomia entre luz e trevas, e as substitui por gradações entre os opostos; tal como os místicos e ascetas do Cristianismo do Médio Oriente nos primeiros séculos da cristandade, al-Suhrawardī vê a intensificação de luz como uma escada que progride de modo complexo do opaco e do crepuscular para o transparente e o solar. De facto, todo o pensamento místico, qualquer que seja a sua raiz filosófica ou religiosa, concebe a aproximação à divindade como a intensificação da luz.
No mundo europeu moderno, os processos de secularização trouxeram consigo para a epistemologia as imagens binárias da luz e das trevas. O conhecimento e a verdade passaram a ser a luz, a claridade, enquanto a ignorância e a falsidade passaram a ser as trevas, a escuridão. A máxima expressão desse transplante ocorreu, na cultural ocidental, com o Iluminismo do Século das Luzes. O nome diz tudo. E, como referi, no Budismo, o conceito de Iluminismo é igualmente central, mas a verdade a que aspira não é verdade sobre o mundo; é antes a verdade sobre cada um, o auto-conhecimento, em vez do conhecimento exterior.
Este esquemático percurso pretende mostrar que muitos dos binarismos que continuam a assombrar a vida contemporânea (homem/mulher, branco/negro, humanidade/natureza, razão/emoção, forma/conteúdo) têm uma longa tradição no binarismo claridade/escuridão. Daí a importância dos autores que, ao longo dos tempos, foram chamando a atenção para a complexidade, as misturas e as interpenetrações que tais oposições escondem.
Já referi o filósofo islâmico al-Suhrawardī. Na cultura ocidental a figura mais fascinante é Giordano Bruno. Entre a luz e as trevas, entre a claridade e a escuridão, Giordano Bruno (1548-1600) introduz uma mediação entre os opostos – a sombra. Contrariamente à tradição platónica, Bruno atribui um valor positivo à sombra, já que esta é a medida da verdade que é acessível aos humanos. Esta é para mim uma das novidades mais intrigantes e mais duradouras do pensamento renascentista ocidental, prova convincente de que é nos períodos inaugurais que a criatividade humana mais se afirma. Bruno é uma figura fulgurante que pagou com a vida o seu fulgor. Foi excomungado tanto pela igreja católica como pelas igrejas protestantes, e queimado vivo pela Inquisição no Campo di Fiori em 1600.
De Umbris Idearum (Da sombra das Ideias), publicado em 1582, é na aparência apenas um livro sobre técnicas de memorização (ars memoriae), pois os frades (tal como os imãs islâmicos) deviam memorizar os textos sagrados (recorrendo a mnemónicas) como parte da sua educação e da sua edificação religiosa. Mas, na verdade, o livro é muito mais que isso e contém toda uma teologia e uma filosofia, em parte, baseadas na nova ciência copernicana.
Para Bruno, os humanos devem lutar contra as trevas em nome da luz, mas nunca alcançam a luz. A luz é do reino de Deus. O reino dos seres humanos são as sombras, que Bruno designa por phantasmata. As sombras podem ser de diferentes tipos, mas é na sombra que estamos condenados a viver. A sombra é a metáfora dos limites do nosso conhecimento, um conhecimento finito num universo que Bruno considera ser infinito (a máxima heresia ao tempo), mas também é o único meio de obtermos uma imagem do que é a verdade divina. A luz é uma roupa que induz em erro, mas apenas porque a nudez da verdade nos está vedada. A luz não está ao nosso alcance, mas a sombra contém vestígios de luz (lucis vestigium).
Para o argumento que aqui defendo, as trevas e a luz contribuem igualmente para a produção da sombra. Nenhuma é nada e as duas são tudo. Séculos mais tarde, Hegel diria que a verdade está no todo. Bruno foi considerado arrogante ao defender que se Deus é infinito e o mundo foi criado à Sua imagem, o mundo é igualmente infinito e cada átomo de vida, por mais ínfimo, tem uma dimensão espiritual, ou seja, alma. Para mim, Bruno é antes um apelo à humildade do humano.
Em todo este percurso, o entendimento do sentido da existência é contido na dicotomia claridade/escuridão ou luz/trevas. Ou seja, apenas um dos sentidos dos seres humanos é mobilizado – a visão. Não significará isto uma limitação auto-imposta? O que se perde nessa limitação? O que se ganharia em termos de compreensão do mundo e da sociedade se em vez de mobilizarmos apenas um dos sentidos mobilizássemos todos eles? Será possível submeter o monopólio da visão ao que designo por sociologia das ausências?
O início de uma resposta pode encontrar-se, por exemplo, nas filosofias dos povos indígenas da América Latina. O sábio indígena escuta a realidade (a terra, o céu, a paisagem) em vez de a ver apenas, sente-a, apalpa-a, toca-lhe, saboreia-a, em vez de simplesmente a observar. E se a observa, não o faz sem se sentir observado por aquilo que observa. É um sentirpensar que não reconhece a dicotomia sujeito/objecto e mobiliza todos os sentidos. Aponta para uma racionalidade mais ampla que não conhece sem ser conhecida, que é racional por ser também emocional e afectiva. Em tempos de catástrofe ecológica e em que a recorrência das pandemias nos transmite mensagens inquietantes da natureza sobre a insustentabilidade dos modelos de produção e de consumo que dominam a vida contemporânea, as filosofias indígenas oferecem possibilidades de compreensão da realidade e de transformação social que vão muito para além das que a tradição predominantemente visual pode oferecer. Não se trata de substituir uma tradição por outra, trata-se antes de as integrar a todas num paradigma de filosofia intercultural.