Escrevo este texto no terceiro dia do sétimo mês de 2020, vivendo a quarentena no Brasil. É até covardia falar que este ano está bom para alguma coisa. Já começou com o Covid (que nunca mais foi embora), e logo vieram os vulcões em erupção, os terremotos no México, a nuvem de gafanhotos no Sul, a tempestade de areia no oceano, o ciclone bomba (e seguimos contando...), que ainda somam-se às catástrofes causadas pelo homem, como a possibilidade anunciada de uma terceira guerra mundial, lá no começo do ano, ou mesmo o desgoverno de nosso presidente (e seus ministros)... tudo ao mesmo tempo acontecendo.
Falar de literatura neste ano de cabeça-para-baixo pode até parecer fora-de-lugar. Mas se notícias atípicas e estranhas são o novo normal, me sinto praticamente autorizada a trazer mais uma, no mínimo, singular. Se é que vocês, leitores, já não ficaram sabendo... afinal, a velocidade da circulação das informações está mais rápida do que nunca. O fato é que saiu em todos os jornais e meios digitais de comunicação: o mundo está lendo Machado. E lendo tanto que a primeira edição da nova tradução de Memórias Póstumas de Brás Cubas para o inglês, traduzida pela escritora e pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux e lançada pela Penguin Classics, esgotou no primeiro dia. Até sair mais uma nova tiragem, que já seria a terceira (a segunda não deu nem “para o cheiro”, como dizemos aqui), novos leitores gringos terão que se contentar com a versão ebook.
Quem acompanha um pouco as revistas culturais internacionais sabe que a New Yorker é campeã em viralizar (a ponto de transformar em celebridades repentinas) novos e velhos artistas, a partir de uma singela publicação em sua revista semanal: escritores, ilustradores, artistas plásticos, cineastas, cartunistas etc. Pois foi assim, na primeira semana de junho, que Machado de Assis passou a encantar o mundo, quando, em um ensaio do escritor Dave Eggers, nosso conhecido de tantos vestibulares, centelha de adaptações a filmes, séries e peças de teatro, o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas foi descrito como brilhante, espirituoso, e um dos livros mais inteligentes já escritos.
Esse ensaio, que também se publica (em forma resumida), junto com outros dois textos, na introdução à obra na versão em inglês, também aponta que Memórias póstumas..., lançada pela primeira vez em capítulos, na Revista Brazileira, em 1880, ademais de ser uma obra atemporal – ainda que retrate uma nação específica, em um espaço e um tempo determinados – e de conter uma crítica dilacerante às convenções dessa sociedade – é também uma obra muito engraçada até os dias de hoje. Sabemos que não temos muitas obras que se caracterizam assim... obras que nos embasbacam com a qualidade da forma ao mesmo tempo que nos provocam risos das frases sarcásticas, das situações cômicas e também daquilo que não está dito, mas ironicamente subentendido. E é por isso que, creio eu, esse é um bom ano para ler Machado.
Machado de Assis (1839-1908), considerado até hoje o maior escritor brasileiro de todos os tempos, publicou dezenas de livros. Entre romances, crônicas, contos, obras de teatro e poemas, muitas histórias e temáticas distintas foram desenvolvidas, tocadas ou ao menos “lembradas”. Religião, política, a sociedade, a família, os velhos costumes, a escravidão, as relações amorosas, o erotismo, a doença, as artes, a moda... são tantas e quase todas tão bem trabalhadas que Machado também tornou-se por isso o autor brasileiro que mais escreveram sobre. Só a editora universitária da USP, a Edusp, por exemplo, possui quinze livros sobre o autor e suas obras. Machado também ganhou revista acadêmica própria, grupos de estudos em faculdades diversas, uma infinidade de teses e dissertações que se eu fosse listar aqui, essa resenha teria a extensão de uma pesquisa de livre- docência. Isso sem contar as já 99 traduções oficiais de Machado para outros idiomas (além das não oficiais, claro). Muitas delas acompanhadas de longas e várias notas de tradução, edição e leitura crítica, graças não só aos fãs de Machado pelo mundo, mas a programas de financiamento e apoio aos tradutores para a difusão da literatura brasileira a outros mercados. Machado de Assis, assim como Jorge Luis Borges, Gabriel García Marquez, Dostoievski e Kafka, é considerado um dos grandes.
Machado nunca foi um militante. Pelo contrário: ficou conhecido justamente por ser o que hoje chamariam de “isentão”. Não só não levantou nenhuma bandeira, como também não há nenhuma citação em seu nome (não digo o mesmo de suas personagens, que estas sim criticam mundos e fundos) que nos permita caracterizá- lo como uma ou outra identidade. Para fazer parte da comunidade intelectual, apagou qualquer traço em seu discurso que pudesse identificar a sua cor, as suas doenças e sua origem. Mas quem somos nós para julgar sua postura na sociedade carioca do fim do século XIX? Até porque, como aprendemos com um de seus melhores protagonistas, o narrador Brás Cubas, se olharmos de perto, não há mesmo ninguém que se salve. E, além disso, podemos sim dizer que Machado transcendeu sua biografia pela qualidade inestimável de suas obras.
Então voltemos a falar de Memórias Póstumas de Brás Cubas, e não de seu criador ou do fenômeno crítico literário machadiano, que faz jus a herança deixada. Memórias póstumas... é uma história narrada por um morto, que, por ter toda a eternidade pela frente, pode tardar o tempo que for para contar sua versão dos fatos; e, sem medo de críticas e reações intempestivas (afinal, o que fariam a um morto?), ele pode também ser muito sincero em suas reflexões sobre o sentido da vida e em seus julgamentos a aqueles que estão “do outro lado”, que, neste caso em particular, é o da vida. Mas o brilhantismo de Memórias Póstumas... sobrepassa as desventuras do narrador sem caráter. A obra é o que é também porque sua composição de capítulos alcança um nível de complexidade que nem mesmo cento e tantos anos depois, os escritores são capazes de emular. Na construção de capítulos com uma frase; na escolha cruel de palavras para certas condenações morais; nas descrições dos delírios paquidérmicos à beira da morte; nas digressões muito bem colocadas; na composição da filosofia do Humanitismo de seu amigo Quincas Borba.
E também, como Dave Eggers a caracteriza em seu ensaio, The posthumous memoirs of Brás Cubas é uma história de amor (de amores, melhor dito), e só por isso, já teríamos motivos suficientes (novelas mexicanas: sabemos de seu poder!) para entender a captura ano a ano de novos leitores machadianos no mercado global. O bruxo do Cosme Velho, como também ficou conhecido Machado de Assis, sabia escrever uma boa história de amor.
Convenhamos: Em tempos de feminicídios ainda investigados sob o decrépito nome de “crimes passionais”, encontrar boas histórias de amor, e que elas terminem com humor, apesar das lágrimas (e pequenos barracos) no percurso, já é, como diz outro grande escritor nosso, “um descanso na loucura”. Em Memórias Póstumas..., enquanto se decompõe em seu pedaço de chão, Brás Cubas analisa suas relações amorosas e enfatiza os dramas que viveu com o prazer de quem olha para o passado e percebe que não foi nada disso que o matou. Perdas e desilusões fazem parte da vida e há que superar, se possível, com uma pitada de alívio, como quem suspira depois de rir de uma história divertida.
Em tempos de racismo cometido por policiais, prefeitos, governadores e até chefes de Estado, celebrar a obra de um escritor que expõe a crueldade conveniente que a elite do Rio de Janeiro atuou no fim do século XIX, também nos permite enxergar o caminho perverso da história que há séculos silencia e que segue silenciando aqueles que constroem a cidade “maravilhosa”. Um escritor negro e carioca, ainda por cima, que apesar de todo o branqueamento (inclusive em seu atestado de óbito), o descobrimos. Antes tarde do que nunca.
Em tempos de depressão e ansiedade associadas ao isolamento social, é quase uma aula magna o relato de Brás Cubas que não só festeja a leveza genuína de estar só, mas também nos mostra o quanto podemos estar solitários mesmo quando estando junto das pessoas, em relações cáusticas e patéticas. Passou da hora de repensar a letra daquela bossa nova que é impossível ser feliz sozinho.
Em tempos de fake news, melhor um personagem morto, sem filhos, e que nos faça refletir sobre suas delações premiadas, que um vivo, transmitindo o seu mísero legado a outras tantas criaturas, e nos fazendo urrar com suas mentiras deslavadas. E por fim, em tempos em que a morte é tão dura e temida, o riso desconfortável que o narrador nos provoca (junto com os memes!), ao ironizar a própria desgraça e desde o lugar que será o destino de todos, inclusive daqueles que parecem – infelizmente – vasos ruins e inquebráveis, também nos possibilita respirar, restituídos de um pouco de esperança, que até isso tudo vai passar.
E para aqueles, como eu, que já leram Machado (quase) de cabo a rabo, e até de trás para frente, ouso dizer: 2020 também é um bom ano para relê-lo.