Nem Vale nem Montanha.
A pintura de Rui Miguel Leitão Ferreira vive num delicado equilíbrio entre a gestão do que se afirma e a espontaneidade do que acontece. Assente no encontro de algo profundamente físico e simultaneamente espiritual, o seu trabalho desenvolve-se em torno da interseção de diferentes formas, tempos e modos de fazer. O suporte, o material e a ação articulam-se num diálogo que é conjuntamente pensado e intuído, destacando a relação entre o que se depõe na tela, o que dela emerge, e o que nela se adivinha. Gerindo um cruzamento de várias camadas, esse diálogo salienta uma vontade de inscrição - quando o artista aplica a tinta diretamente na tela, e a aceitação de um resultado desconhecido - quando o artista cobre, decalca, arranca e destapa as várias peles que enformam a pintura.
Estruturalmente físicas e a um mesmo tempo imagéticas, as obras de Rui Ferreira vivem da densidade que emanam. Uma densidade que provém da manipulação atenta da matéria, reconhecendo-lhe a espessura, a elasticidade, a opacidade, ou a reação química, mas também de uma cuidada observação da imagem, percebendo, ponto a ponto, o que a constitui e caracteriza. Por isso, se falarmos na densidade da pintura e na complexidade que lhe é inerente, devemos também apontar a desarmante simplicidade com que toda a produção se desenrola, acolhendo o acidente, o imprevisto e o incontrolável. Podemos assim dizer que o seu trabalho aborda um equilíbrio de forças, onde se gere a vontade e a aceitação, a matéria e a imagem, o complexo e o singelo.
Vivendo numa convergência de opostos, as obras de Rui Ferreira solicitam uma atenção que funciona a diferentes níveis. Se por um lado a dimensão das telas é grande e envolvente, captando-nos ao longe para o interior do seu campo de influência, por outro há uma proximidade que nos alicia e convida à descoberta do detalhe. Oscilando entre estas duas esferas, do vigor do global à delicadeza do particular, o artista convida-nos a descobrir o seu trabalho de forma lenta, curiosa e contemplativa.
Nessa descoberta inteiramo-nos de múltiplas presenças que se ocultam e se revelam, indagando a própria natureza da Pintura. Trata-se da sobreposição de várias figuras que a evolução do trabalho se apressa a diluir, ou do pouco que delas resta por apagamento e saturação da superfície. A maioria fica absorvida por sucessivas camadas de tinta, mas há um pequeno número que, de modo curioso, surgindo como um fantasma, ocupa a parte de trás da tela. Em todos os casos, falamos de entidades que acompanham o desenvolvimento do trabalho, alheando-se à construção de um discurso narrativo e representacional.
Dir-se-ia que as obras vincam uma lógica processual e afastam-se da vontade de ilustrar, ensaiando uma desconstrução de hierarquias e referências cronológicas que mantém a ação em aberto. Os valores não obedecem a uma ordem de procedimentos ou a uma estratégia pré-definida e as ações não são sequenciais ou lineares, existindo, antes, um funcionamento que se altera em consonância com a parte e com o todo. No desenrolar desse processo, ou no livre avançar desse caminho, as figuras esgueiram-se, as manchas sobrepõem-se e o material ganha expressão. A mão pede o toque e o olhar embala-nos numa perscrutação arqueológica que nos alicia com a descoberta do que antes existia, do que gradualmente se transforma, e do que ainda persiste. Remetendo-nos ora à proximidade da matéria ora ao distanciamento que a escala da tela reclama, as obras induzem uma ligação entre o lado táctil e o lado visual, vagueando entre a intimidade de cada fragmento, e a força do conjunto.
Na verdade, o que a pintura de Rui Miguel Leitão Ferreira nos sugere, entre o que se vê e o que se esconde, entre as várias camadas e os seus tempos cruzados, é que tudo se move no equilíbrio de um campo transitório, sem regras nem estereótipos. A natureza desse trabalho não procura referências a que nos possamos agarrar, convidando-nos antes à possibilidade de uma impermanência. É isso que a pintura pede e é isso que o artista cumpre. O mesmo que no Oriente se invoca quando, a propósito da posição das mãos, em meditação, se aponta a condição aberta de não sermos nem vale nem montanha.
Sérgio Fazenda Rodrigues