A expressão evoca irresistivelmente o episódio dos Actos de Pedro (Manuscrito Vercelli XXXV), da visão de Pedro, fugindo de Roma, de Jesus ressuscitado, que lhe teria respondido Romam vado iterum crucifigi ("Vou a Roma para ser crucificado de novo"), visão estimulando o regresso do apóstolo na perspectiva do martírio.
Não vem isto a propósito de nenhuma reedição nem releitura do livro Quo Vadis (1895) de Henryk Sienkiewicz, nem de nenhum visionamento das suas diversas versões cinematográficas (as mudas de 1901, 1912 e 1925 ou as subsequentes de 1951,1985 e 2001).
Vem, sim, a propósito da intervenção que me estava confiada no Fórum do Futuro realizado nos dias 21 e 22 de Setembro de 2019 no Porto e em Lisboa, respectivamente, e promovido pelo Nós, Cidadãos, que se propõe dinamizar o exercício da cidadania da sociedade civil e dar-lhe voz… linha humanista que, desde o Iluminismo, se tem reformulado e adaptado, persistindo neste louvável desiderato, apesar da indiferença abstencionista da maioria, outrora, entusiasmada com a democracia e, hoje, decepcionada com a classe política, com os dirigentes em geral e com as instâncias que têm por função proteger o cidadão (justiça, forças de segurança pública, exército…).
Em crónica anterior, falei de Cultura e do modo como as Humanidades estão a tornar-se cada vez mais marginais e residuais no quotidiano das comunidades, nos programas académicos, nos planos nacionais, enfim, na nossa vida, cada vez mais dominada pela quantidade, como dizia René Guénon (O Reino da Quantidade e os Sinais dos Tempos, 1945).
E, sem dúvida, em 1959, com As Duas Culturas de C. P. Snow, e, em 1995, com A Terceira Cultura, de John Brockman, apesar de algum pessimismo no mundo das Humanidades, ainda havia lugar para a esperança relativamente à continuidade de uma cultura humanista pautada pelos valores universais, mas valorizadora das identidades historicamente elaboradas, atenta ao bem-estar das sociedades. Essa esperança cedeu, progressivamente, à desesperança e a um sentimento de desumanização da vida nas sociedades.
Emerge, agora, o conceito de conciliência, unificador do conhecimento, proposto por Edward Osborne Wilson (Consilience: The Unity of Knowledge, 1998). Quo vadis…?
Estamos numa fase em que, quando não se fala dos grandes problemas globais de mudanças climáticas ou da falta de crescimento económico, anúncios da nova versão do apocalipse, se ‘canta’ a Cultura: ao lado do Brexit, da corrupção e dos problemas por resolver, eis o Programa Europa Criativa da União Europeia de apoio aos sectores cultural e criativo reunindo os anteriores programas Media, Media Mundus e Cultura, com fundos geridos pela Agência Executiva para a Educação, Audiovisual e Cultura (EACEA - Education, Audiovisual and Culture Executive Agency).
Quando acedemos à apresentação do Programa Europa Criativa, ficamos seduzidos com a atenção da Comissão Europeia à Cultura, que passa por múltiplas vertentes e se exprime, mais simbolicamente, através de iniciativas como: o Prémio da União Europeia para a Literatura (European Union Prize for Literature - EUPL), o Prémio Europeu para a Arquitectura Contemporânea (European Union Prize for Contemporary Architecture), a Marca do Património Europeu (European Heritage Label), o Prémio Europeu para o Património Cultural (Europa Nostra Awards), as Capitais Europeias da Cultura, o Music Moves Europe Talent Award (ex-EBBA), o Music Moves Europe (iniciativa para o diálogo com o sector da música), os Dias Europeus do Património (European Heritage Days), o apoio financeiro a projectos intersectoriais (estudos, linha de financiamento ao apoio a projectos de integração de refugiados, entre outros), o financiamento dos Criative Europe Desks...
Mas o que é, de facto, a Cultura e que atenção merece ela, verdadeiramente, das instâncias oficiais que a ‘cantam’?
Antes de mais: o que é a Cultura?
A Cultura é bem mais do que o que as suas manifestações estéticas (Literatura, Música, etc.): é a representação do mundo e de nós no mundo, imprescindível, por isso, para uma sociedade saudável: para o bem-estar e a coesão social, a cidadania, a prospectiva e a inovação, mas também para a resposta das comunidades aos desafios globais e resiliência às crises.
Associada à história dos 7 sábios da Grécia, conhece-te a ti mesmo [gr., *gnōthi seauton] é expressão inscrita na entrada do templo de Delfos, construído em honra a Apolo, o deus do sol, da beleza e da harmonia, e a sua autoria tem sido sucessivamente atribuída a Tales de Mileto, Sócrates, Heráclito, Pitágoras. A frase completa é
Conhece-te a ti mesmo e conhecerás os deuses e o universo.
Representações, pois, em relação e em sucessiva inscrição…
E a Cultura, assim entendida, é fundamental para a saúde mental: o homem é ser imaginante/ficcionante, pelo que apenas a Cultura permite a sua plena realização, As neurociências, que procuram actualmente cartografar o funcionamento cerebral, oferecem-nos já expressivos mapas do funcionamento cerebral: o estímulo das artes/ciências activa-o harmonicamente e abrange uma área mais vasta; a monotonia temática reduz a área e o ritmo da sua actividade; a violência produz ‘choques’ que o exaurem e, com o tempo, o modificam negativamente.
Por outro lado, actualmente, confrontamo-nos com um fenómeno que a ficção/antecipação científica anunciava: a inteligência artificial e robótica. Este era o grande problema que Stephen Hawking antecipava para o futuro: no aperfeiçoamento das máquinas, a inteligência artificial em breve daria o salto que a faria ultrapassar o humano, autonomizando-se dele. Ora, antes e para o evitar, o homem teria de a programar de modo a criar consonância de objectivos entre ambos… sob pena de ela se voltar contra o seu criador e o destruir.
Enfim, passemos, agora, a observar a atenção que ela, verdadeiramente, tem das instâncias oficiais que a ‘cantam’.
A verdadeira atenção que tem das instâncias oficiais que a ‘cantam’
Há um [reconhecimento generalizado da sua importância](Cf. Barómetro Gerador Qmetrics. Estudo anual da Percepção da Cultura em Portugal, 2019). e do movimento de capital associado à Cultura (mais de 80.000 empregos, mais de 70.000 empresas, etc.) e há programas que a evidenciam. Europa Criativa com os seus programas e iniciativas (capitais culturais, prémios, etc.) é disso bom exemplo.
Apesar disso, contrariando esse discurso e o potencial económico registado (mais de 70.000 empresas), avultam dois aspectos:
A % de PIB nacional na Europa é residual e Portugal está na cauda da Europa (Hungria 1º lugar: 7,2% da sua despesa total; média da União Europeia é de 2,2%; Portugal está em 4.º lugar a partir do fundo, com 1,8%). Sintomaticamente, até a entrada Economia Portuguesa da Wikipédia regista só 3 ocorrências de Cultura, sinalizando efectiva desatenção a esta.
As estatísticas nacionais e internacionais (Índices mundiais) não contemplam a Cultura (só excepcionalmente). Passemo-los em revista.
Os nacionais:
- INE: “Cultura, desporto e lazer”
- INE: Índice de Bem-Estar: não tem “Cultura”
- PORDATA:
- Portugal: a Cultura surge associada, nunca a solo: “Cultura e Desporto” (com os tópicos: Bibliotecas e Livros | Cinema | Despesas | Desporto | Espectáculos ao Vivo | Museus e Galerias | Periódicos)
- Europa: não tem “Cultura”
- Retrato “Portugal na Europa”: não tem “Cultura”
- Portugal: a Cultura surge associada, nunca a solo: “Cultura e Desporto” (com os tópicos: Bibliotecas e Livros | Cinema | Despesas | Desporto | Espectáculos ao Vivo | Museus e Galerias | Periódicos)
Os internacionais:
- Índice da Qualidade de Vida /Best Countries: “Cultural Influence”
- Mercer’s Quality of Living Reports: “Recreation” e “Socio-cultural environment”
- "Where to be Born" Index: não tem “Cultura”
- Country Economy: não tem “Cultura”
- Genuine Progress Indicator (GPI): não tem “Cultura”
- Global Indicators Database /Pew Research Centre: não tem “Cultura”
- Gross National Well-being (GNW) : não tem “Cultura”
- Happy Planet Index: não tem “Cultura”
- Índice de Desenvolvimento Humano: não tem “Cultura”
- Índice/Relatório da Felicidade (World Hapiness Repport): não tem “Cultura”
- Legatum Prosperity Index: não tem “Cultura”
- OECD Better Life Index (BLI) : não tem “Cultura”
- Social Progress Index: não tem “Cultura”
- Vision of Humanity – Global Peace Index and Positive Peace: não tem “Cultura”
- World Development Indicators: não tem “Cultura”
Curiosamente, no Estudo anual da Percepção da Cultura em Portugal(2019, assinala-se que maioria da população tende a identificar a Cultura com a Literatura (99,1%), o que nos reconduz ao conceito de Cultura como representação do mundo e de nós no mundo (compreensiva: de relação entre, narrativa) exigindo um sujeito imaginante, lúdico, de memória e futurante (social e de cultura), ou seja, capaz de ficcionar. Não será, pois, por acaso que o episódio do encontro e do diálogo entre Édipo e a Esfinge se mantém com a mesma pregnância: se ela configura o mistério/enigma da hominização no seu próprio corpo (de réptil a homem), no longo tempo da espécie, e o coloca diante de Édipo, também o enuncia no tempo de vida humano (tempo curto).
E a Cultura será também o que permite sintetizar velha história e novas questões, como o faz Yuval Noah Harari nas suas 21 lições para o séc. XXI:
Criámos os mitos para unir a nossa espécie.
Domámos a Natureza para que nos desse o seu poder.
Agora, estamos a redesenhar a vida para alcançarmos os nossos sonhos mais ousados.
Mas será que ainda sabemos quem somos?
Ou será que as nossas invenções acabarão por nos tornar irrelevantes? Como podemos proteger-nos de uma guerra nuclear, de cataclismos ecológicos ou de falhas tecnológicas?
O que podemos fazer contra a epidemia de notícias falsas ou a ameaça do terrorismo? O que devemos ensinar aos nossos filhos?
Saberemos responder?
Quo Vadis, Cultura...?