“Amar também é bom, porque o amor é difícil. O amor de duas criaturas humanas talvez seja a tarefa mais difícil que nos foi imposta, a maior e última prova, a obra para a qual todas as outras são apenas uma preparação”.

(Rilke, p. 55-6)

Quem em sua vida amorosa já não passou por decepções, amarguras, desilusões? Muitas vezes ficamos com cara de ué..., sem entender o que aconteceu e apenas a sensação de profunda dor a nos corroer o peito. E não importa a duração do relacionamento. Quando não se dissocia amor e sexo, começamos a sentir desde o primeiro momento tudo que acontece neste intervalo que se pode chamar “entre nós”, e é quase que automático o envolvimento e a tessitura de uma fina rede que podemos chamar de vínculo amoroso e que nos torna muito vulneráveis e sensíveis ao menor movimento e/ou manifestação do outro. Em nossa vida cotidiana estamos sempre projetando (ver conceito de animus/anima no artigo de minha autoria Animus/Anima: esse outro estranho que me habita) a figura do(a) parceiro(a) ideal em pessoas cujo perfil mais facilmente acolha esta projeção, dada sua similaridade ou maior proximidade com a imagem internalizada daquela. Ao mesmo tempo em que cultivamos, sem perceber acabamos também por cultuar essa imagem em nossa psique e ela passa a ter “vida própria” e funciona como a nossa virtual fonte de gratificação, a via através da qual seremos felizes e resolveremos nossos problemas.

Quando de fato se dá o encontro, é inevitável o choque com a realidade, pois percebemos que o parceiro que temos agora à nossa frente não é aquele com o qual sonhamos e pensávamos que fosse. Assim, em menos de um minuto, a imagem que jazia intocável no pedestal de nossa imaginação durante anos, esfacela-se literalmente no chão. Em nosso caráter humano e tangível - somos feitos de matéria orgânica, onde circulam humores tais como sangue, saliva e suor, e estamos todos sujeitos à lei da entropia - evidenciam-se as contradições do parceiro, seus pontos fracos, inúmeros aspectos que não se justapõem, faltas que nos parecem imperdoáveis / inadmissíveis, conjunto que na sua totalidade acaba por corromper irremediavelmente a bela imagem que havíamos sonhado e acalentado dentro de nós por tanto tempo.

Profundamente decepcionados, nossa ação imediata é repudiar o parceiro que, perdida a correspondência no vínculo, entrega-se ao mais profundo sentimento de abandono. Esse é um momento muito difícil em que a dor é mais aguda para ambos, pois enquanto um vê seus sonhos se esfacelarem, o outro subitamente se vê de maneira sutil e até cortês relegado à categoria de um “desconhecido qualquer”. A distância instaurada remete ao “não-eu” e à morte prematura do pequeno broto que acabou de romper a terra com suas hastes ainda tremulantes. O vazio onde antes havia um vínculo amoroso e de intimidade talvez seja uma das dores mais profundas do ser humano. Fechadas as cortinas, ambos se sentem então traídos, enganados, usados, vilipendiados, talvez até desesperançados de si próprios. É nesta fase que aflora o pior de nós mesmos. Ficamos confusos, não sabemos se o pior está em nós ou no outro. O fato é que na dor que trazemos no peito há um misto de culpa, abandono, frustração e um profundo sentimento de insuficiência.

Com o abaixar da poeira, abre-se o espaço para reflexão. Percebemos então que é próprio da nossa condição humana, o ser inacabado. E como seres inacabados que somos, falta uma coisa aqui e outra acolá. Somos capengas em alguma coisa (e como é difícil expor a nossa capenguice para o outro!!!).

Então, para que o relacionamento de fato aconteça, é necessário cada qual aceitar a condição humana do outro e ambos se disporem a construir algo, agora em cima de bases mais sólidas. O contato com a realidade é doloroso, contudo, ter os pés na terra nos possibilita enxergar o parceiro tal qual ele é. Enxergar com clareza é tudo que precisamos, pois nos sentimos mais seguros para dar o próximo passo. Isto nos possibilita ter consciência de nossos próprios limites e mesmo assim correr o risco de estar com o outro e não ser aceito. No intervalo entre os nossos próprios alcances e limites podemos testar a elasticidade de nossas arestas e nos encontrar verdadeiramente em uma posição que seja confortável para ambos, e lançar as bases para a construção de um vínculo sólido.

Se ainda sob o efeito do choque com a realidade, pensamos que já terminou o que nem bem começou, mas precisamos ficar espertos porque este talvez seja apenas um preâmbulo de algo maior que está por vir. O que está em jogo é a flexibilidade de cada uma das partes, nossa capacidade de ponderar e de verificar até onde podemos ceder e o que ceder. É bom pensar no que estamos perdendo e o que podemos ganhar com o outro e sem o outro.

O relacionamento entre duas pessoas é sempre um desafio e um risco, até porque envolve a reedição de vivências de antigos relacionamentos, principalmente aquelas de nossos “primeiros amores” (o casal parental). O risco de não ser aceito. O risco de expor nossas próprias fragilidades e nos sentirmos nus e o que o outro vai fazer com isso. E o mais terrível dos riscos, que é o risco de não ser amado.

E na roda-viva da vida, se deixamos passar uma oportunidade, enquanto vivemos continuamos buscando o amor, aquele que nos salva e que é o bálsamo para nossas feridas, até porque a noção da falta que trazemos no peito é muito aguda. Contudo, nestas circunvoluções do amor precisamos saber nos orientar e nos situar, tomar distância e ampliar o campo de percepção, até porque muitos aspectos nos escapam se estamos muito identificados com o problema e a nossa própria dor. O príncipe encantado não vem montado num cavalo branco e nem sempre está disposto a salvar a linda donzela. E a donzela nem sempre precisa ser salva, mas apenas vista e reconhecida na sua individualidade. Até porque estamos no ano de 2018, era de Aquarius. Este dado de realidade faz com que muitos contos precisem ser reeditados e até mesmo reinventados.

Lembrando que o conflito externo nada mais é do que uma reprodução do conflito interno, que ocorre dentro de cada homem e de cada mulher que precisam se proteger de todos os “perigos” que um relacionamento potencialmente representa para sua individualidade, liberdade, autonomia e domínio de si. A presença do outro pode nos fazer perder o controle sobre a situação e sobre nossos próprios sentimentos. O outro nos deixa confusos e nos faz perder o chão. Então, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que nos salva também representa uma ameaça.

Fassa & Echenique (1992) apontam para esta nova realidade: seres humanos que aceitam a inevitabilidade do conflito interno entre o desejo de fusão e o desejo de individuação, integrando dentro de si, sem medo, o princípio feminino e o princípio masculino, pela coexistência harmônica e reciprocamente enriquecedora de forças opostas.:

“Homens e mulheres desenvolvem os lados até então bloqueados de sua personalidade e tornam-se seres mais completos que já não precisam mais se unir por suas carências – escolhem-se por amor, para dividir alegrias e construir vidas em comum, com cumplicidade e solidariedade” (p. 148).

Um critério importantíssimo para validar um relacionamento é se cada qual ajuda o outro a crescer, sendo prematuro e imprudente abortar a experiência se este teste ainda não foi realizado. Assim, que cada qual dê o próximo passo.

Referências

ECHENIQUE, Marta. & FASSA, Bebeth. - Poder e Amor. A micropolítica das relações. São Paulo, Editora Aleph, 1992. 150 p.
RILKE, Rainer Maria. - Cartas a um jovem poeta. Rio de Janeiro, Editora Globo, 1989.