No vendaval de festas, encontros e festivais que irrompem estes dias, por Portugal de lés-a-lés, é perfeitamente natural agendar ininterruptamente fins-de-semana sucessivos entre concertos, tendas e multidões sedentas de música. Não, não estou a exagerar. Na pitoresca cidade marítima de Viana de Castelo o destaque foi todo para música electrónica na décima segunda edição do Neopop 2017. Entre os dias 3 e 5 de Agosto, dezenas de produtores e artistas se perfilaram nos dois palcos junto ao Forte de Santiago da Barra para desfilar o que de mais inovador e moderno estão a picar os decks. Com um caminho trilhado desde 2006, promovendo e proporcionando as melhores propostas de house, techno, electro e seus derivados, o Neopop é já uma marca integrada na cena de dança portuguesa e num vasto circuito clubbing emergido por sua grande responsabilidade e – porque não? – pela capacidade de arriscar e apontar fileiras a um género algo inóspito e verde na pátria lusitana.

Dentro da indefinição do seu próprio conceito (AntiPop) até à consolidação lexical do seu próprio reportório (NeoPop), o festival nortenho coligiu e edificou um espaço ritual e verdadeiramente popular numa época em que a discoteca e as raves clandestinas reinavam como pólos de atração. Hoje, introduzidos a um género expandido, fortificado e naturalmente dividido, o Neopop prosseguiu a linha de um cartaz sempre coerente, salgado com interessantes nuances estilísticas e apimentado com headliners históricos e decisivos.

Num claro sentido de internacionalização e visão cronológica do género, Kraftwerk e Moderat roubaram e repartiram entre si a maior parte das atenções num alinhamento progressivo, denso, simbólico, duro, mas sempre real daquilo que é o techno como forma artística nos dias de hoje. De facto, poderia considerar-se a demarcação destes dois fenómenos como início e meta desta grande maratona a que submeteu a música electrónica, a engenharia sonora a e o audiovisual, num insofismável futuro de máquinas. Aqui, o Robot e a imagem artificial de uma música sem carne, não é adereço nem minudência senão o busílis da mensagem que atravessa a atmosfera do festival. O futuro é digital, a margem de inovação dentro deste espectro é enorme, as distopias cinematográficas de filmes como Blade Runner ou Metrópolis não são tão exageradas. Kraftwerk são um exemplo disso mesmo, as anacronias pósteras da sua música mostram-nos que é um erro subestimar o incógnito e o fantástico.

Num país tão pequeno como Portugal em que se cristalizava a teoria de que todas as novas vanguardas chegavam dez anos mais tarde, a consagração de quatros alemães revolucionários (na verdade foram muito mais) que impuseram um tutorial de como fazer «música electrónica» no sentido mais abstrato e de outros três que juntam magistralmente vários ingredientes e vectores desse período pós-kraut, é de uma importância incontornável para um testamento cultural. Para lá dos protagonistas houve espaço ainda para os micro-samples de The Field, os assaltos planetários e monolíticos de Luke Slater como Planetary Assault Systems, o delicioso cruzamento estilístico de Helena Hauff, os territórios sempre iconoclastas e complexos de Speedy J, o industrial tão elegante como subversivo de Paula Temple, a herança sempre inevitável do Detroit techno Sound de Octave One e DJ Bone, uma amostra entre muitos outros. Assim foi a décima segunda edição do Neopop Music Festival.

Moderat

Preparados que estavam muitos dos presentes para o último concerto dos germânicos antes do anunciado hiato e travessia no deserto criativo que reclamaram para si, depois de três LPs e vários Eps, o concerto de Moderat afigurava-se como especial nem que seja pela despedida dos palcos portugueses. Sascha, Gernot e Sebastian construíram uma tríade de sucesso, deliberadamente produzida para unir dois mundos em contraste e, de certa maneira, claramente fendidos na sua génese conceptual. O universo delicodoce e smoothy de Apparat direcionado mais para um ambient pop e os delírios e desvarios glitch, electro house e breakbeat dos Modeselektor. Duas dimensões que chocam e refletem a linguagem própria de Moderat tanto nos álbuns que fazem com nos próprios concertos que desenham. Isso foi bastante patente no Neo Stage com uma setlist discorrida pelos três discos que alternara a busca por novas melodias e texturas sonoras de Sascha Ring e o ritmo caótico de beats assimétricos e acid house de Modeselektor. Uma clara demonstração da convergência na cena alemã entre projectos e do ponto de situação da electrónica na senda da música popular. Os alemães tocaram Rusty Nails, A New Error, Bad Kingdom, Versions, Running entre muitas outras durante cerca de uma hora e meia de concerto, com altos e baixos revelador de uma certa aproximação a uma logística de espectáculo, distinta de todos os dj sets que o precederam e seguiram.

Kraftwerk

Encontrar a simbiose perfeita entre máquina e homem. Desumanizar a própria definição de concerto e identificar a interseção entre a intuição e o controlo, da música, do andamento, da performance. Os Goblin de Isaac Asimov. Foi esse, sempre, o compromisso artístico e estético que os Kraftwerk assumiram antes de toda a gente, sem concessões sentimentais. Um teletransporte sonoro de fundo tridimensional, em que a ficção científica se apodera do futuro, com sensação do agora nunca ter estado tão atrasado. Nos últimos anos o grupo de Düsseldorf composto pelo fundador Ralf Hütter e acompanhado por Fritz Hilpert, Henning Schmitz e Falk Grieffenhagen, regressou em força ao universo das artes visuais com uma primeira retrospetiva apresentada em 2012 no Museum Of Modern Art de Nova Iorque.

Seguiram-se apresentações The Catalogue – 1 2 3 4 5 6 7 8 9 antes da tour portuguesa de há dois anos de e deste live show. Frases curtas e concisas, sons sintéticos e ritmos mecanizados serviram de base a uma poesia sonora que ganhou expressão visual na imagem robótica com que sempre se apresentaram ao vivo. Como todos os clássicos, reconhecidos na antecâmara do nosso córtex cerebral, alinharam-se Man machine, Spacelab, Neon Lights, Radioactivity, passando pelo medley de Tour de France e Trans Europe Express até à mais recente Musique Electronique. Desde o início, aliás, que os Kraftwerk consideram que os concertos devem ser eventos audiovisuais completos, conseguindo alargar a sua influência para além do campo musical e estendendo-a à arte visual contemporânea, como uma expressão de um mundo dominado por máquinas e computadores. No final, o encore com The Robots, Aero Dynamik, estenderam a cenografia com quatro test dummies a reforçarem a ausência de espontaneidade e reacção daqueles arquitectos sonoros. Techno pop quando ninguém sabia onde cada um acabava, synthwave quando não faria qualquer sentido aplicar. Conjecturas de um mundo pré-analógico, quando ainda se empreitavam os escombros traumáticos da guerra e a velha cortina de Berlim educava os seus filhos para as consequências da derrota, com sangue gelado a passar nas veias. Os Kraftwerk foram os mais belos filhos do século XXI, do velho preconceito krautrock até a este concerto glorioso movidos pela curiosidade misantropa dos anos setenta e validados pelo sair de cena dos oitentas.