Recentemente, perdemos o querido professor Antonio Candido. Certa vez, numa de suas obras didáticas amplamente difundida entre os estudantes do primeiro ano dos cursos de Letras ao redor do país, Candido postulou que «o que o artista tem a comunicar, ele o faz à medida que se exprime. A expressão é o aspecto fundamental da arte e portanto da literatura» (p. 27, O Estudo analítico do poema).
Pois bem. Uma frase simples, beirando o óbvio, típica de um capítulo introdutório. Mas sobretudo, é uma síntese tão evidente da natureza literária que é praticamente impossível contestar. Mas hoje em dia, na era dos haters, sabemos que sempre há aqueles que decidem polemizar, ser do contra. Obviamente que poucos acadêmicos em sã consciência viriam a público contradizer Antonio Candido, pois possivelmente sofreriam um verdadeiro massacre intelectual.
Portanto, é claro, não o fazem. Ao invés disso, como é de costume entre qualquer elite que já houve e haverá, atacam o elo mais fraco da corrente. E no campo da literatura isso significa ser mulher, não elitizada e não pertencente ao meio acadêmico. E assim foi feito com Carolina de Jesus, a escritora brasileira cuja obra, de repente, foi rebaixada do status de literatura, de acordo com um homem branco, de elite, membro da Academia Brasileira de Letras. Percebam o conflito de interesses.
Eu me pergunto se, como professor de literatura que é, Ivan Cavalcanti Proença diria que Candido se equivocou, ou se daria uma grande volta pseudo-conceitual, citando outros autores e teorias mirabolantes, para justificar que o fundamento primordial citado acima não se aplica a Carolina de Jesus, à literatura e, muito menos, ao preconceito dele.
Acaso há menos força expressiva na obra de Carolina do que na de Clarice, para citar uma mulher reconhecida no meio literário? Do que na de Aluísio de Azevedo, para citar um autor que representou a gente pobre do cortiço? Por que não poderia haver espaço na nossa literatura para uma obra tão honesta e que gera tanta empatia? A resposta parece óbvia: porque a elite - seja ela social ou acadêmica, tanto faz - decidiu.
Por outro lado, a mesma discussão (é ou não é literatura) jamais foi suscitada pelo diário de Anne Frank, por exemplo. A adolescente manteve um registro desde antes da guerra até o final dos seus dias no cativeiro que dividia com a família, em Amsterdam. Após o final da guerra, e de sua morte precoce, o pai de Anne encontrou o diário e publicou-o. O texto ainda é uma das obras mais lidas ao redor do mundo, e sua relevância, seja como documento histórico, relato verídico, e mesmo como a tal Literatura, jamais é posta em cheque. Por que, então, para homens como Cavalcanti Proença a adolescente Anne, cuja educação escolar foi interrompida pela perseguição aos judeus, é mais qualificada a ser escritora que a catadora de papel Carolina?
Poderíamos abordar essa questão a partir de diversas perspectivas, mas a verdade é que Anne era uma europeia branca, e por esta razão - e nenhuma outra – lhe foi outorgado um salvo conduto, ainda que póstumo, para a literatura. Sua morte cruel e sem sentido num campo de concentração só aumenta a empatia do leitor e da crítica, além de agregar um sentido mais profundo às reminiscências daquela garota que nos lembra a nós mesmos, nossos anseios, temores e desejos juvenis.
O que é realmente desconcertante não é a empatia e o reconhecimento que emergem da obra de Anne, mas a falta de respeito e carinho com que Carolina é tratada – pasmem – em seu próprio país, e ainda por cima por aqueles que deveriam defender e propagar a nossa literatura. A ignorância e a má vontade demonstrada por membros dos mais altos escalões acadêmicos em relação à obra de Carolina, além de vergonhosa, é um péssimo sinal de que somos um país tão racista quanto aquele no qual Quarto de Despejo foi escrito.
Sim, é verdade que os escritos de Carolina continham erros de ortografia. Mas o simples beletrismo não pode ser a razão pela qual sua obra ainda é tão mal aceita, afinal, seria absolutamente inverossímil se o diário de uma favelada, com formação escolar limitada, fosse escrito em português barroco. Sua obra é perfeita na medida em que significante e significado correspondem um ao outro mutuamente. Apesar da aparente aleatoriedade do enredo, seus personagens cativam, a trama é bem encadeada, e a sabedoria profunda que emana da necessidade e da privação é absolutamente comovente.
O problema não está, em absoluto, na sua composição. Está em seus críticos, representantes de um academicismo ranço, arcaico, onde apenas os seus iguais estão autorizados a mover-se em determinados meios. E a literatura é apenas um deles. Gente pretensiosa, mesquinha. Cegos de tanta soberba. E pensar que é neste meio lodoso em que se estão formando nossos futuros professores, tradutores e pensadores da literatura.
A inclusão da principal obra de Carolina no vestibular da Unicamp, no entanto, é uma luz no fim do túnel. Não só pela atenção que recairá sobre essa obra tão importante, mas principalmente, porque estaremos expondo inúmeros jovens à uma nova perspectiva, pouquíssimo explorada em nosso cânon literário: o ponto de vista de uma mulher, pobre, mãe solteira e negra.
Leiam Carolina, sim. Leiam Anne e Clarice também, mas acima de tudo conheçam as nossas mulheres, as nossas dores, as nossas tragédias. Sejam merecedores do seu talento. Amem-nas, protejam o seu legado. Não deixemos que caiam no esquecimento, no limbo criado por aqueles que não as compreendem, ou temem a sua força. O racismo não pode ser mais forte que nós.