O interior não é apenas o universo do homem privado, mas também o seu estojo. Habitar significa deixar rastros. No interior, eles são acentuados. Colchas e cobertores, fronhas e estojos em que os objetos de uso quotidiano imprimam a sua marca são imaginados em grande quantidade. Também os rastros do morador ficam expressos no interior.1
(Walter Benjamin)
A casa - o lar - constitui na sociedade de finais de séc. XIX a prova da construção de uma nova maneira de estar, e de ser. A forma como os espaços, públicos e de representação ou de intimidade e resguardo, se dispõem dentro do edifício, é fruto de uma mudança, que Walter Benjamin identifica como o processo de separação entre “o homem e o cidadão, o privado e público”2.“É nesta altura [1º metade do séc. XIX] que pela primeira vez, o espaço em que vive o homem privado se assume em contraponto com o seu local de trabalho, [o homem] procura no interior a satisfação das suas ilusões (...) [o interior] representa para o homem privado, o universo”3. “O ‘doce lar’, onde o homem retempera as forças desgastadas pela luta diária num mundo cada vez mais efervescente e mutável, junto da esposa, (...) e dos filhos. Na sua casa, o homem do séc. XIX desejará construir uma muralha em volta da vida privada”4.
A Casa de Santiago é bem o exemplo do que aqui se refere: o edifício desenvolve-se em quatro pisos, reservando o da entrada – nobre - para o piso dos salões, da sala de jantar e de receção; acima deste, o piso da intimidade, onde não acedem as visitas, os quartos, gabinetes de vestir e os espaços de higiene básica. Subterrâneo e sótão estão destinados aos serviçais. No interior, estão claramente marcados os espaços de cada um. Uma escadaria de serviço liga todo o edifício em altura e tem comunicação com os espaços onde a família se movimenta. Os criados, invisíveis, tratam de limpezas e arrumações, sem interferirem na privacidade familiar.
À data da construção da casa, e conforme inscrição no azulejo da torre com que o visitante se depara à entrada da Quinta, 1986, não foi vontade dos seus proprietários – Família de Santiago Carvalho e Sousa – que esta fosse uma habitação sazonal, de veraneio, apesar da escolha de Leça da Palmeira, para erigir a sua habitação no Porto. Possuíam uma outra habitação, o Paço de S. Cipriano em Tabuadelo, Guimarães.
A construção da Casa de Vila Franca, nome pela qual era então conhecida, foi um projeto do arquiteto italiano Nicola Bigaglia, “que interpretou a vontade de João Santiago e materializou a conceção que tinha do que deveria ser a morada de um membro da aristocracia que escolheu para viver uma estância balnear, sítio de eleição da comunidade inglesa. (…) O proprietário participou ativamente na conceção da volumetria e arranjo interno dos espaços e podemos perceber [através do acervo que já aqui esteve também exposto no passado] o modo como a casa se foi desenhando no espirito do proprietário, as soluções que foram resultando do seu contato com o arquiteto e a forma que finalmente veio a tomar às mãos deste”5.
Aqui habitou a família até cerca de meados da primeira metade do séc. XX, altura em que já apenas D. Maria Carolina e funcionários aqui residiam (D. João Santiago vem a falecer em 1930 e Dinis Maria em 1934) e acaba por abandonar a casa e vem a falecer no Paço de S. Cipriano, em 1954.
Formalmente, podemos considerar que a Casa de Santiago se insere na tipologia de arquitetura de veraneio. Raquel Henriques da Silva entende a sua designação como “as casas, quase sempre moradias unifamiliares, que foram construídas para uso estival, embora desde sempre, algumas delas fossem ocupadas durante todo o ano. (…) Trata-se de um conjunto de opções construtivas e decorativas que permite – sem rigor taxativo – distingui-las das casas da cidade. (…) Não uma casa para todos os dias, para o desempenho da vida rotineira, marcada pelo trabalho, mas um refúgio para uma interrupção no calendário, vocacionado para ao descanso e a fruição da natureza”6.
São marcadas, propositadamente, pela extravagância: “refúgios algo mágicos que nos lembra histórias de infância, reatualizando a atração por ‘castelos de fadas’, cumprindo funções primordiais de habitação que sendo um refúgio material, é também lugar de elaboração ou sustentação de sonhos”7.
Nelson Mota acrescenta uma outra terminologia, mais pragmática, “moradias isoladas” (da alta burguesia, banqueiros e grandes comerciantes do Porto) que se destacam do conjunto, “sem acesso direto ao exterior”. (...) O modo como cada moradia se posiciona em relação ao espaço público constitui um reflexo do valor atribuído pela burguesia oitocentista à definição de uma fronteira mais ou menos permeável entre o espaço público e a habitação”.
Membros da média e alta burguesia preferem localizações mais periféricas em relação à cidade consolidada, e estabelecem fronteiras capazes de filtrar a relação entre o público e o privado, afastando-se da rua ou criando dispositivos de distinção dos acessos. Existe uma relação entre o nível socioeconómico e o grau de permeabilidade do interior da habitação em relação ao espaço público; quanto mais elevado é o primeiro, menor é o segundo”8.
Nesta exposição o ponto de partida foi a Casa de Santiago e dos seus espaços, habitados com obras da coleção municipal. Em cada sala/espaço, a função é o denominador comum, predomina sobre a seleção das obras de arte. A seleção abrange não apenas as obras datadas da época da habitação da casa, mas de todo o vasto espólio, do séc. XIX ao séc. XXI, sem ordem cronológica. Jogamos com relações entre habitantes e sociedade, ações do quotidiano, estados de espírito provocados pela sensibilidade, provocações que nos fazem refletir, emoções.
Notas
1 Benjamin, Walter, Walter Benjamin, Sociologia, trad. Flávio R. Kothe 1996, São Paulo, Ática
2 Ref. Mota, Nelson, “O espaço doméstico burguês do Porto (...)”, I Encontro CITCEM “Família, Espaço e Património”, 2010, Braga.
3 Ref. Mota, Nelson, “O espaço doméstico burguês do Porto (...)”, I Encontro CITCEM “Família, Espaço e Património”, 2010, Braga.
4 Cerveira, Alexandra, e outros, A Casa de Vila Franca há cem anos atrás, 1996, Matosinhos, Câmara Municipal de Matosinhos.
5 Cerveira, Alexandra, e outros, A Casa de Vila Franca há cem anos atrás, 1996, Matosinhos, Câmara Municipal de Matosinhos
6 Silva, Raquel Henriques da, “Arquitectura de Veraneio. Cascais”, 2010, Cascais, Câmara Municipal de Cascais.
7 Silva, Raquel Henriques da, “Arquitectura de Veraneio. Cascais”, 2010, Cascais, Câmara Municipal de Cascais.
8 Mota, Nelson, “O espaço doméstico burguês do Porto no final do século XIX: fronteiras entre o público e o privado”, I Encontro CITCEM “Família, Espaço e Património”, 2010, Braga
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