Falar sobre o cinema contemporâneo no Brasil e em Portugal é contar uma história de um diálogo inexistente. Mas que, de alguma maneira, ao longo do tempo, encontrou pontos de convergência. O que pretendo fazer aqui é retirar da história as histórias que me interessam para refletir sobre o que se passa hoje entre estas duas cinematografias. Porque o cinema atual, nos dois países, é tão diverso e pluridiscursivo? E porque, sobretudo, optou-se pela experimentação em que a poesia e a prosa são (con)fundidas e conseguem, apesar das diferenças, revelar uma possível identidade compartilhada por uma língua, que apesar de ser a mesma, consegue ser muitas.
O começo do cinema português e brasileiro foi muito semelhante, em um e outro país. A novidade recém-criada em Paris, chega rapidamente pelas mãos de aventureiros ou homens de negócios. No caso do Brasil, podemos dizer, homens de negócios escusos, já que um dos principais investidores da indústria da diversão foi o Dr. José Roberto de Cunha Sales, médico, teatrólogo, prestidigitador, fundador do primeiro museu de cera do país, inventor de uma fórmula de sabão e de um remédio contra todas as moléstias e bicheiro. Aliás, o dinheiro do jogo ilegal vai estar por trás de outro empresário da altura, Paschoal Segreto, cujos negócios iriam suplantar o miraculoso Cunha Teles.
No caso de Portugal, a instabilidade e algumas histórias romantizadas marcam a entrada da indústria cinematográfica no país. Ou melhor dizendo, do cinema, já que nenhum dos dois países criou, efetivamente, um sistema industrial de produção de filmes ao longo das suas histórias com o medium. Além do espírito aventureiro ou romântico que paira sobre os inícios da história do cinema nos dois países, as primeiras ficções de que se tem notícia e que foram, na altura, um sucesso de público, eram histórias de ladrões e assassinos. Em Portugal, Os Crimes de Diogo Alves, dirigido por João Tavares e no Brasil, Os Estranguladores no Rio, dirigido pelo fotógrafo português, Antônio Leal. O que denota o caráter popular do cinematographo: uma diversão, em meio de tantas outras, a baixo custo, mas que revela também a rápida absorção dos princípios da narrativa através de imagens que começa a consolidar-se no resto do mundo.
O cinema a criar identidades nacionais
Passada a aventura inicial, a fase dos registos e das tentativas ora de criar um cinema popular, ora de adaptar obras literárias que emprestassem o seu lastro cultural ao cinema, chegou o momento da criação de uma indústria, capaz de dar vazão à demanda que já se instalara um pouco por todo o mundo. De uma forma instável, característica que irá marcar desde sempre a produção de cinema em Portugal e no Brasil, vão aparecendo a pouco e pouco, produtoras que se instalam e realizadores que deixam o seu nome na história. No Brasil, a expansão do cinema por todo o território foi rápida e vários polos de produção aparecem em cada região do país: do Amazonas ao Rio Grande do Sul, com mais ou menos sucesso, com maior ou menor duração, aparecem filmes e salas de cinema que projetam, não só produções estrangeiras, mas também uma crescente produção de ficção nacional. Em Portugal, a tendência documental é a que se destaca e Leitão de Barros aparece como o primeiro grande realizador do cinema nacional.
Entre 1928 e 1931, José Leitão de Barros, que iniciara sua carreira em 1918, realiza quatro obras-primas da cinematografia portuguesa: Nazaré, Praia de Pescadores; Maria do Mar; Lisboa, Crónica Anedótica de uma Capital e A Severa. Em 1931 aparece aquele que pode ser considerado o primeiro filme “de autor” do cinema português, Douro, Faina Fluvial de Manoel de Oliveira. O filme de Oliveira seguia a tendência do cinema de vanguarda que estava a ser feito por toda a Europa. Esta última direção não foi a tomada pelo cinema português a partir dos anos 30. O cinema de Leitão de Barros ficou como modelo, e o próprio realizador continuou a ter uma importância fulcral na produção do país nas décadas seguintes e, quiçá, numa certa vertente “verista” do novo cinema português da década de 60.
No Brasil, a tendência da ficção popular prossegue, mas com o aparecimento de Humberto Mauro e Mário Peixoto vemos espelhada a mesma situação que ocorria em Portugal. Humberto Mauro, um dos pioneiros do cinema no Brasil, pertencia ao Ciclo de Cataguases e, como Leitão de Barros, constrói uma cinematografia que é um misto de documento de uma identidade nacional, escudado por uma enorme capacidade técnica e demonstrando um perfeito domínio da arte de narrar através de imagens. Tesouro Perdido; Na Primavera da Vida e Brasa Dormida são filmes emblemáticos que irão influenciar a produção cinematográfica do país.
Mário Peixoto, como Manoel de Oliveira, é um caso à parte na história do cinema daquele país. Realizador de um único filme, Limite, estreado a 17 de maio de 1931, no Rio de Janeiro, é o primeiro “autor” de cinema no país. Seu interesse pelo cinema já se revelara através da sua participação no Chaplin Club, um círculo de amigos que se reuniam para discutir os filmes e que lança, entre os anos 28 e 30, a revista O Fan. Limite, como o nome indica, explora ao máximo o poder narrativo do cinema, não no sentido convencional, mas na direção dos experimentos das vanguardas europeias. E, como no caso português, também não deixará marcas até ao aparecimento do Cinema Novo em meados da década de 50.
As décadas de 30 a 50, nos dois países, e em outros mais, como Espanha, são o período em que há a consolidação de uma produção nacional, num sistema industrial, respeitando os limites do conceito de indústria cinematográfica, já que a sua dimensão nestes países nunca foi muito grande e nunca foi estável. Portugal e Brasil sob o governo ditatorial usam o cinema para criar uma imagem do país estereotipada e que reflete não a população das duas nações, mas o desejo, mais ou menos mesquinho, mais ou menos programático, dos seus ditadores. O mesmo ocorre em Espanha e noutros países europeus sob regimes ditatoriais que veem no cinema um fabuloso meio para divulgar ideias e inventar verdades.
As ‘chanchadas’ brasileiras e o cinema-revista português são bastante populares nos seus países. Um humor brejeiro salpicado de canções, retrata um universo urbano composto de tipos: o carnavalesco, o marialva, a mulher inocente, a femme fatale modesta, as costureirinhas, enfim, o povo que vai ao cinema e que se revê, de alguma maneira, nos ecrãs. No caso do Brasil, sob o signo do samba, em Portugal, com o fado e outras canções populares, edifica-se um cinema que penetra no imaginário da nação. João Mário Grilo afirmou que as décadas de 30 a 50 podem ser caracterizadas pelo surgimento de um cinema de atores. No Brasil, além dos atores, temos as produtoras que estavam por trás de cada filme e que tinham a sua marca registada, tentado provar que era possível concorrer com o cinema feito em Hollywood. A portuguesa mais baiana de todos os tempos explode como estrela no panteão do cinema mundial: Carmen Miranda. Era preciso criar uma imagem do país para ser projetada dentro e fora das fronteiras nacionais: Portugal e Brasil eram países, cada um à sua maneira, formado por gente feliz. Mesmo que sofredora, era gente capaz de brincar com a própria miséria e de superá-la. Eis um bom povo de duas boas nações!
Até agora, com algumas exceções, não podemos postular a existência de um cinema português ou de um cinema brasileiro. Havia sim, pelo contrário, algumas tendências mundiais que se refletiam na produção destes países. De uma maneira algo antropofágica, os musicais e o cinema de género hollywoodiano, o sistema das estrelas e o culto aos atores, são recriados e, mesmo com idiossincrasias que dizem respeito ao sistema de produção material e ideológico, a maior parte dos filmes realizado na altura não buscou um caminho particular, nem seguiu a direção apontada, lá atrás, por Oliveira ou Peixoto, deixou-se, antes, contaminar pela vontade de produzir industrialmente, mesmo sem ter uma indústria que lhes desse sustentação.
O cinema em busca da sua identidade
Acompanhando a tendência mundial que inaugura novas cinematografias nos anos 50, tanto Brasil quanto Portugal viram surgir um novo cinema, um cinema que fugia da determinação de produções proto industriais e que seguia os ensinamentos do neorrealismo italiano e da Nouvelle Vague francesa: uma câmara na mão e uma ideia na cabeça, mote do realizador Glauber Rocha, passa a ser um ideal compartilhado por todos. O Neorrealismo, que surge nos anos 50 em Itália, é uma saída possível para a produção de filmes em países que não tinham a máquina industrial norte-americana. E é também um cinema que professa uma ideologia de esquerda, algo militante, na tentativa de mostrar ao país, e ao mundo, a Itália real. Os atores dão lugar às pessoas comuns nos ecrãs e os cenários são substituídos pelas cidades fragmentadas e feridas. Torna-se mais barato produzir um filme, desde que se tenha uma história para contar/mostrar.
Na França, jovens críticos de cinema decidem trocar os jornais e as revistas pela câmara e criam uma nova vaga de produções independentes que vai concorrer com a produção francesa da época, financiada, em parte, pelo Estado e que se dedicava, sobretudo, à realização de grandes dramas históricos. É também realista, apesar de usar o termo numa outra acepção, a tendência do novo cinema francês. A angústia de uma geração, que saboreava as palavras de Sartre e convivia com os escombros do mundo pós-guerra, é convertida em cinema. A cidade e o imaginário cinematográfico estão na base da criação dos jovens realizadores que provam a todos que qualquer um poderia fazer um filme. Também Espanha, Alemanha e Inglaterra são invadidas por novas vagas que se manifestam na produção de um cinema mais autoral e mais atento ao mundo que os rodeia e à realidade que os atravessa.
Apesar do cerco da censura, que vigorava em alguns países como Portugal, Brasil e Espanha, nasce, nos anos 50, uma cinematografia que pode ser reconhecida como autêntica e reveladora do estado real das nações. O Cinema Novo brasileiro congrega as influências italianas e francesas, bem como recupera um dos caminhos possíveis do cinema nacional: o experimentalismo de Mário Peixoto. Rio, 40 Graus, de 1955, realizado por Nelson Pereira dos Santos, é considerado o pioneiro do novo rumo estético-cultural-ideológico que o cinema brasileiro vai seguir. O filme foi censurado porque, de acordo com o censor chefe de polícia, a temperatura média do Rio de Janeiro nunca passara dos 39º. A verdade é que o filme mostrava um Rio que o governo não queria ver e não queria que fosse mostrado.
Além de Nelson Pereira dos Santos, realizadores neófitos ou consagrados, como Glauber Rocha, o moçambicano Ruy Guerra, Leon Hirszman, entre outros, vão produzir a cinematografia que vai colocar o país na história do cinema mundial. A realidade urbana e rural é transcriada nos ecrãs de um modo não convencional. O novo cinema não era novo só no conteúdo, mas era inovador, sobremaneira, na linguagem. Cria-se uma mitologia que transcende o quotidiano e projeta uma realidade outra, obscurecida pela luminosidade do país do carnaval. Com várias ideias na cabeça e poucos recursos, abriram-se diversas portas para a criação de um cinema brasileiro, que refletisse a diversidade, e a dimensão continental, do país.
Em Portugal, no cinema, como na literatura, a tendência neorrealista e documental volta a destacar-se. No caso do cinema esta tendência é matizada pelo retorno à cena de Manoel de Oliveira e de uma certa tendência poética que subverte o princípio do realismo. Os anos 60 veem nascer o Novo Cinema Português, um cinema à procura de uma linguagem e de uma identidade, a identidade de um povo, do verdadeiro cinema português. Como no caso brasileiro, não é apenas um cinema que busque novos temas, mas é um cinema que investe numa nova linguagem. Que segue, anos mais tarde, as pegadas do filme de estreia de Oliveira, poesia e realidade são conjugadas como se de um só verbo se tratasse.
Quem pode afirmar que Belarmino é um documentário, apesar de ter sido feito como tal? Da mesma forma, quem pode dizer que Deus e o Diabo na Terra do Sol é uma ficção? Poesia e documento confundem-se em cada plano, no uso da banda sonora, e da sua supressão em alguns momentos, no modo como atores e não-atores são convertidos em pessoas vivas no ecrã. Suas histórias são a História de um povo, ou de parte dele, ao contrário da criação de estereótipos promovida pelo cinema musical dos anos 30 e 40, os novos cinemas buscam encontrar os tipos – uma tipologia ocultada por anos de ditadura que consegue vir à luz.
É importante ressaltar que, apesar da ditadura que continuava em Portugal e da nova ditadura que se instalara no Brasil com o Golpe Militar de 1964, o cinema serviu como um importante instrumento de luta e de denúncia da real situação dos dois países. De uma cinematografia festiva, que dominou a cena nos anos 40 e parte dos anos 50, o Novo Cinema Português e o Cinema Novo brasileiro investiram numa estética neorrealista com tendências ideológicas vincadamente de esquerda. O Manifesto cinema-novista Luz & Ação (1963-1973), assinado por sete dos principais realizadores do movimento, dá voz a um anseio que não era apenas brasileiro, mas também estava presente nos realizadores portugueses. O sentimento geral era de recusa ao “cinema burocrático das estatísticas e dos mitos pseudoindustriais”.
Se não havia uma indústria que financiasse os novos projetos, o apoio estatal era inevitável, mesmo que paradoxal: os Estados ditatoriais criaram mecanismos de apoio a um cinema que era, maioritariamente, contra o regime. O SNI – Secretariado Nacional da Informação, que em Portugal administrava o Fundo do Cinema, apoia realizadores como Manoel de Oliveira e investe na formação através da criação de bolsas de estudos para o estrangeiro. Um investimento que, segundo João Mário Grilo, refletia mais a necessidade de suprir os quadros da recém-criada Radiotelevisão Portuguesa (1955) mas que, indiretamente, possibilitou a existência do Novo Cinema Português.
No caso do Brasil, os anos 50 são marcados por uma ideia que surgia nas comissões de cinema e congressos: cinema é problema de governo. A forte presença do cinema estrangeiro no país motivava os produtores e realizadores nacionais a pedirem ao Estado que este assumisse o papel de defensor e promotor de uma cinematografia brasileira. Em 1966 é criado o INC – Instituto Nacional de Cinema, já em plena ditadura militar, o que excluiu, a partida, os cinema-novistas e investiu num sistema de produção mais industrial que visava, uma vez mais, atrair públicos e reforçar uma determinada imagem do país.
Os realizadores que, a princípio, exigiram apoios financeiros estatais, tanto em Portugal como no Brasil, foram pouco a pouco sendo relegados para um lugar marginal em relação à produção cinematográfica vinculada a um programa pre-estabelecido, orientada para os interesses nacionais, que, nos dois países, passou a ser maioritária. Em 1969 é criada, no Brasil, a Embrafilme que ao longo da década de 70 vai agregar discursos antagónicos e incorporar, nos seus quadros, muitos dos realizadores do Cinema Novo. Investe-se numa produção nacional escudada na literatura em que os mitos da História saltam para os ecrãs para combater a crescente indústria marginal da pornochanchada, género que atraía um grande público em todo o país.
Em 1970 é fundado o CPC - Centro Português de Cinema, com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, que vai incentivar uma produção de caráter mais experimental, e investe na criação, ou no ressurgimento, de uma cultura cinéfila. O apoio é dado a realizadores como João César Monteiro, Paulo Rocha e Manoel de Oliveira que se afirmam como autores de um cinema mais maduro e consciente das suas limitações. Esta cinematografia vai anunciar o cinema que virá a ser feito após a queda da ditadura no 25 de abril.
Um cinema à deriva
Contemporaneamente as duas cinematografias encontram-se no mesmo barco, tomadas as devidas diferenças. No barco da inquietude e da pluralidade dos caminhos. Esgotados, talvez, de buscarem uma identidade nacional, uma identidade que os tornasse Português ou Brasileiro, o cinema, nos dois países, decidiu apostar na plurivocidade dos discursos. Não há, nem nunca houve, uma autêntica indústria cinematográfica no Brasil nem em Portugal. E se, por um lado, este fator complica todo o processo de produção e de distribuição dos filmes, por outro, permite que cada um possa seguir o seu próprio percurso narrativo e experimental. Permite ainda que possam conviver, lado a lado, filmes comerciais com filmes de autor, filmes destinados ao grande público e filmes que sabemos, só serão exibidos nos circuitos dos festivais.
Depois do fim do ciclo do cinema novo e do cinema marginal, com a extinção da Embrafilme, no governo do presidente Fernando Collor de Melo, o cinema brasileiro teve de conviver com a dura realidade do mercado sem estar minimamente preparado para isto. Nos anos 70 a produção nacional chegava a 100 filmes por ano e em 1992 foram produzidos apenas 2 filmes de longa-metragem. A Lei Rouanet, de 1991 e a Lei do Audiovisual, de 1993, ajudam o cinema a retomar, aos poucos, a sua produção que vai ser significativamente diferente daquela que a precedeu.
Os anos 90 foram muito importantes para a cinematografia brasileira porque marcaram a falência do modelo de produção estatal e a lenta adaptação ao mercado. A partir de 93 o cinema começa a recuperar-se e as produções aumentam ano a ano. Desde filmes infantis, cujo mercado era garantido pelo público que consumia os mesmos artistas na televisão a um cinema mais experimental, tentou-se de tudo. Em 1995 o filme Carlota Joaquina, A Princesa do Brasil, de Carla Camurati, assinala o início de um período que ficou conhecido como o cinema da retomada. Os governos de vários estados como o Ceará, o Espírito Santo e o Rio Grande do Sul, dentre outros, criaram leis de incentivo e formas de apoio ao cinema, bem como foi sendo ampliada a rede de distribuição através dos festivais que surgiam em diversos pontos do país.
A crítica ao cinema brasileiro feita em Portugal na altura, que evidenciava a estreita ligação entre o cinema e a TV, era pertinente porque houve, de facto, uma aproximação maior entre os dois meios, inclusive no surgimento de uma poética híbrida que aceitava, sem qualquer preconceito, as influências da estética televisiva na produção do imaginário cinematográfico. Poética que foi reforçada com o surgimento, e o uso, cada vez mais visível, dos novos media para captação e edição de imagens. Fazer cinema, nos dias que correm, é muito mais barato e acessível. O sonho de Glauber Rocha, uma ideia na cabeça e uma câmara na mão, torna-se realidade. Mas as ideias estão longe de ser as mesmas que fizeram o Cinema Novo.
A ANCINE – Agência Nacional do Cinema, criada em 2001, ocupa um lugar de destaque na regulamentação da produção e distribuição do cinema no Brasil, abrindo concursos e coordenado a informação sobre o setor. Em Portugal, passados os anos-Gulbenkian, ficou a Lei 7/71, que está na origem do IPC e que, de uma forma inusitada, obrigava o mercado externo a financiar as produções internas através de um adicional sobre os bilhetes de cinema que, em parte, era revertido para a produção nacional. O ICA – Instituto do Cinema e Audiovisual é o equivalente português à ANCINE e tanto um quanto o outro tem trabalhado no sentido de promover e dar visibilidade internacional às cinematografias dos dois países.
Com mais ou menos apoio estatal continua a ser impossível falar de uma tendência da cinematografia portuguesa e brasileira atualmente. Se há uma tendência, é a ausência de um modo de produção que unifique ou corporifique aquilo que passamos a chamar de Cinema Brasileiro ou Cinema Português. Há algumas linhas gerais que podem ser traçadas. No caso do Brasil, o diálogo com a televisão mostrou-se muitas vezes profícuo. Filmes como Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, ou Tropa de Elite, de José Padilha, têm características de uma produção e distribuição industriais que nada deixam a dever a produtos norte-americanos. Por outro lado, filmes mais experimentais como Viajo porque preciso e volto porque te amo de Karim Ainouz e Marcelo Gomes, realizados com meios mais baratos e sem uma distribuição que os coloque nas principais salas do mundo, permite aos seus realizadores a liberdade de experimentar formatos, narrativas, conteúdos.
Em Portugal, desde o cinema mais comercial de António Pedro Vasconcelos ao conceptualismo de Gabriel Abrantes ou de Edgar Pera, há uma espécie de vale tudo no que diz respeito à produção. A tendência documental, que reaparece um pouco em todo o mundo, tem produzido os mais premiados filmes do cinema português contemporâneo. Um cinema que continua a documentar a realidade, mas que não foge da sua quase irresistível atração pela poesia. O cinema de Edgar Pera, por exemplo, atravessa muitas vezes as fronteiras entre o cinema e a poesia visual, recuperando o experimentalismo presente nos cinemas das vanguardas europeias dos anos 20 do século XX.
O documentário é uma tendência que se expande e que se recria. Há variadíssimos trabalhos que tentam definir os limites do cinema documental e, alguns deles reconhecem que o género explodiu há muito as bordas e as fronteiras, passando por registos diversos que vão do mais convencional ao mais experimental, como na obra de Pedro Sena Nunes ou do jovem realizador Miguel Gonçalves Mendes. E a hibridez também aparece nalguma ficção, caso do cinema de Pedro Costa, que penetra profundamente na realidade, mesmo quando ficcionada e enquadrada por uma fotografia e iluminação pictóricas. Pedro Costa, neste momento, é um dos realizadores portugueses mais estudado pelos teóricos do cinema no Brasil que reconhecem a genialidade do cineasta e o universalismo de seus temas, aparentemente, locais.
O cinema é um meio que, desde sempre, esteve associado à captação e/ou recriação do mundo através da montagem. E estes caminhos fundacionais, o realista e o formalista, perpassam os discursos cinematográficos contemporâneos, às vezes em simultâneo, como se só uma regra restasse da gramática fílmica, a ausência de respeito pelas regras, como no cinema de Edgar Pera ou ainda um retorno ao cinema narrativo mais convencional, caso dos realizadores brasileiros Walter Salles e Fernando Meirelles. Este último iniciou um percurso internacional, através de produções norte-americanas e realiza, em 2008, a controversa adaptação da obra de Saramago, Blindness (Ensaio sobre a cegueira).
O cinema, nos dois países, tem histórias paralelas, com alguns pontos em que se tocam. Nunca houve um diálogo explícito entre as duas cinematografias que falam, teoricamente, a mesma língua. Um par de coproduções e o crescente número de festivais conseguem, por hora, promover uma aproximação maior. Festivais como o CINEPORT - Festival de Cinema de Países de Língua Portuguesa, promovem cinematografias que só circulam, habitualmente, em festivais e divulgam o cinema falado em português. Além dos circuitos de produção e distribuição dos filmes entre os dois países, uma importante plataforma de encontro tem sido associações como a SOCINE - Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual e a sua congénere portuguesa AIM – Associação da Imagem em Movimento que promovem encontros anuais onde o intercâmbio de investigadores dos dois países é intenso e de um lado e do outro são constituídos grupos de trabalho sobre o cinema brasileiro e o português.
O fluxo de investigadores e de filmes entre Portugal e Brasil, através dos encontros das associações de estudos do cinema e dos festivais, ainda não produziu um diálogo mais profícuo entre as duas cinematografias, mas tem permitido que cineastas possam exibir seus filmes num circuito mais alargado o que, consequentemente, permitirá uma maior troca e o surgimento de mais coproduções. Por caminhos diversos, Portugal e Brasil, percorrem a mesma senda na busca sempiterna de um cinema que seja verdadeiramente seu e que possa, com o tempo, vir a ser compartilhado por um mercado mais vasto de países de língua portuguesa.