«O esquecimento é uma poderosa forma de relembrar»
Jorge Luís Borges, Biblioteca Pessoal, 2014.

A compreensão das acções destructivas e impulsos ideológicos do grupo extremista Islamic State of Iraq and Syria (ISIS) convida à releitura de Invention, Memory, and Place (2000), da autoria de Edward W. Said, desasseis anos após a sua publicação (Critical Inquiry, 26 [2]). No decurso dos últimos cinco anos temos assistido a violentas acções perpetradas pelo ISIS em nome de princípios islâmicos extremistas. A argumentação fornecida pelos líderes é religiosa e oposicionista do governo sírio de Bashar al-Assad, sendo as acções militares fundamentadas pelo dever islâmico de praticar a jihad, entendida pelo ISIS como a guerra santa contra todos os infiéis, apesar da esmagadora maioria dos muçulmanos interpretar jihad como «a tentativa para converter infiéis e/ou uma luta para a melhoria moral da comunidade islâmica» (Esposito, 2003).

Algumas notícias soltas:

  1. Desde 20 de Maio de 2015 – data da tomada de Palmira pelo ISIS – que recebemos notícias da destruição de monumentos sírios de elevado valor histórico. No final de Maio foi explodida a prisão de Palmira, em Junho foi quebrada a estátua de Al-lat (Museu de Palmira), a 21 de Agosto foi destruído o mosteiro de Mar Elian (séc. V d.C.), a 31 de Agosto o templo de Baalshamin (séc. 0), a 4 de Setembro as torres funerárias de Elahbel, Jamblique e Khitôt (primeiros séculos d.C.), e a 5 de Outubro o Arco do Triunfo de Palmira (séc. I d.C.).
  2. Em Agosto de 2015 elementos do ISIS raptaram, torturaram e assassinaram Khaled al-Assaad, antigo chefe do Departamento de Museus e Antiguidades de Palmira.
  3. A 5 de Outubro de 2015, em reacção à destruição do Arco do Triunfo de Palmira, Irina Bokova, Presidente da UNESCO, publicou o seguinte comunicado: «Palmira simboliza tudo aquilo que os extremistas condenam: diversidade cultural, diálogo intercultural, o encontro de diferentes comunidades entre a Europa e a Ásia».
  4. Motivadas pela crescente vaga de demolições, a 30 de Agosto de 2015, as universidades de Oxford (UK) e Harvard (US),em parceria com a UNESCO, criaram um arquivo digital com o objectivo de registar fotograficamente todos os manuscritos, artefactos e monumentos ameaçados pelo ISIS para posterior realização de modelos 3D, caso sejam destruídos pelos terroristas.
  5. Numa entrevista conduzida por um repórter da CNN infiltrado em Palmira, foi referido que a excessiva atenção dos media ocidentais à destruição dos templos, começou a formar ódio e revolta nos habitantes locais contra os respectivos monumentos e contra o 'Ocidente', que se mostra unicamente preocupado e chocado com a destruição do património, optando por fechar os olhos ao genocídio de minorias étnicas e aos pedidos de auxílio da população em risco de vida.

Porque é que o ISIS quer destronar o regime de Damasco e a representação ocidental de Palmira? A resposta a esta questão conduz-nos directamente para Invention, Memory, and Place (Said, 2000). A revisão de memórias, o esclarecimento de ensinamentos transmitidos por pais fundadores e/ou a criação de novas interpretações sobre documentos ancestrais (p.e. a reinterpretação de jihad, expresso no al-Quran) correspondem à invenção de narrativas – ways of thinking – que exaltam um conjunto restricto de factos do passado colocados ao serviço de preocupações do presente (Le Goff, 1992). A importância do trabalho de Said reside no entendimento da memória como um instrumento «para ser usado e explorado» (Said 2000: 245), com a finalidade de conquista territorial e o controlo populacional. Esta leitura permite-nos entender a proposta de ‘retorno às origens islâmicas conservadoras’ do ISIS, a reinterpretação do significado de jihad e a destruição dos monumentos e a criação de um «um novo sentido de identidade entre os governantes e os governados» (Said, 2000: 244; Žižek, 2015).

Os monumentos destruídos testemunhavam um passado que liga a actual geografia síria à História Ocidental. Ancora(va)m a História à geografia de Palmira. A noção de 'sites of memory', da autoria de Pierre Nora, atribuiu especial atenção ao modo como a memória é espacialmente constituída (Hoelscher & Alderman, 2004: 349). De acordo com Nora, a memória está ligada a lugares físicos/materiais – templos, cemitérios – e imateriais – celebrações, rituais. Os monumentos destruídos pelo ISIS em Palmira eram lugares de memória que sustentavam e vinculavam a memória e a identidade histórica da população ao lugar; eram significado e significantes do passado da cidade de Palmira. A destruição da prisão de Palmira e o assassinato do arqueólogo Khaled al-Assaad reforçam esta ideia. A célebre e temida prisão de Palmira – que alojou os principais opositores do regime de Damasco, tornando-se num símbolo da (in)justiça, poder e medo da República – foi o primeiro edifício a ser destruídos após a tomada da cidade. O assassinato de al-Assaad corresponde ao mesmo princípio de eliminação do passado: apagar um lugar de memória que representa o passado sírio.

O discurso da Presidente da UNESCO e as medidas tomadas para salvaguardar a representação da ‘arquitectura de herança ocidental na Síria’ demonstram que os monumentos destruídos pelo ISIS estavam ao serviço de narrativas ocidentais. Actualmente, a UNESCO consiste num império transfronteiriço e global, cujo acesso à World Heritage List, infelizmente, implica o desenraizamento da envolvente histórica, cultural e social dos monumentos que classifica. Estes passam a integrar um conjunto de poderosos símbolos ao serviço de uma política ocidental empenhada em conquistar o mundo, o seu passado e a sua história. Assim, acreditamos que as acções do ISIS não devem ser julgadas unicamente como um reflexo do extremismo religioso. A nosso ver, correspondem a um meticuloso plano de acções geopolíticas que ambicionam destronar a jurisdição tanto do regime sírio como da influência ocidental do território.

Bibliografia

Bokova, Irina. Extremists are terrified of history. UNESCO, 2015.
Davies, Caroline. «Khaled al-Assaad profile: the Howard Carter of Palmyra», The Guardian, 2015.
Esposito, John L. The Oxford Dictionary of Islam. Oxford: Oxford University Press, 2003.
Le Goff, Jacques. History and Memory. New York: Columbia University Press, 1992.
Nora, Pierre. “Between memory and history: les lieux de mémoire”, Representations, Vol. 26. Jackson: University of California Press, 1989.
Peters, Joan. From Time Immemorial. New York: Harper and Row, 1984.
Said, Edward W. “Invention, Memory, and Place”, Critical Inquiry, Vol. 26, n.º 2. Chicago: The University of Chicago Press, 2000, pp. 242-259.
Wachtel, Nathan. “Introduction”, History and Anthropology, Vol. 2, n.º 2. New York: Routledge, 1986, pp. 207-224.
Žižek, Slavoj. O Islão é Charlie? Considerações Blasfemas sobre o Islão e a Modernidade. Lisboa: Penguin Random House, 2015.