O legado artístico da pintora mexicana parece estar sempre em voga já há algum tempo, e o que não falta são motivos para tal – ela transita através do nosso momento cultural dialogando perfeitamente com a nossa maneira de conceber, produzir e decodificar as imagens. Seus autorretratos profundamente reveladores da sua identidade funcionam como ‘selfies’ às avessas, onde a idealização, a construção da beleza, a aparência de bem-estar e a tentativa de ocultar imperfeições ficam de fora. Frida não tem medo de se expor para o mundo, mas diferentemente de nós (usuários do Instagram, Snapchat, etc.), mostra suas vísceras, suas angústias mais profundas. Ela revela, sem pudores, o seu fundo do poço. Talvez por isso mesmo ela ainda tenha um impacto tão grande sobre nós, embriões de Narciso.
Frida ainda era muito jovem quando um acidente de ônibus por muito pouco não tirou sua vida. O ‘milagre’ de sua sobrevivência não amenizou as intensas dores no corpo, as limitações físicas, e não reverteram a impossibilidade de seguir os planos que ela havia traçado para a sua vida. Mas foi neste momento, de intensa recuperação e reclusão, em que ela começou a pintar. As sequelas do acidente perseguiram-na pelo resto de sua não tão longa vida e são retratadas em diversas fases e momentos ao longo de sua obra. Frida, às custas de suas próprias mazelas, deixou-nos um belíssimo legado imagético sobre essa experiência sumamente subjetiva e solitária que é a dor.
Através de um breve compilado de retratos listados abaixo, vemos como ela é capaz de transmitir toda uma gama de sensações provenientes de sua dor física, concretizando-as sobre a tela de maneira impressionante. Cada uma destas imagens é um ensinamento profundo sobre o sofrimento e sobre a debilidade humana diante dos limites da própria natureza.
- La Columna Rota (1944): A coluna partida é a da própria artista, representada por uma coluna jônica em ruínas pintada dentro de seu torso. Símbolo de solidez e perenidade, o sustentáculo se desfaz a olhos vistos. A decrepitude do sistema de sustentação do seu próprio corpo gera a Frida imensa dor, demonstrada pelos pregos que cravejam sua pele. Estas perfurações no corpo são frequentes nas obras em que Frida deseja expressar as fortes dores decorrentes das suas sequelas. No entanto, o seu rosto mostra-se sereno, apesar das lágrimas, numa atitude de resistência, resignação e altivez. Diante da imensa fragilidade do próprio corpo, Frida não se entrega ao desespero.
- Árbol de la esperanza/Mantente firme (1946): Frida se encontra cindida em dois planos. A primeira é a que sangra, doente numa maca de hospital, mutilada e envolta em lençóis. Esta é a Frida real, vista à luz do dia, que é representada de costas para nós, talvez inconsciente. Ao seu lado, lhe acompanha a outra Frida vestida em cores vibrantes, que chora segurando um colete ortopédico. A atitude da Frida sã, apesar das lágrimas, tem um efeito alentador. Sua presença representa tanto o desejo da melhora e da lembrança de um corpo são, como a perseverança inquebrantável de Frida em não se entregar. Prostrada numa cama de hospital, sua única esperança é manter a mente firme e a alma inabalada.
- Sin Esperanza (1945): Aqui, Frida se encontra em sua própria cama e de sua boca sai uma enorme massa, que ocupa o centro do quadro. Num primeiro olhar parece que a artista regurgita uma imensidão de comida, porém um segundo olhar pode identificar claramente um funil, apoiado em seu cavalete de pintura, por onde a artista na verdade está sendo alimentada. Sua colcha está decorada com o que parecem ser bactérias vistas por um microscópio, símbolo das infecções que lhe acometiam. O sol e a lua representam a passagem do tempo, que se faz eterno, já que a melhora nunca vem. O solo desértico nos dá um vislumbre do desalento e da desesperança da paciente diante do que parece ser uma situação sem esperança.
- Henry Ford Hospital (1932): Como o próprio título sugere, neste quadro Frida pinta de forma subjetiva a sua traumática experiência no hospital onde sofreu um aborto. A pintora nua no catre hospitalar, deitada sobre o próprio sangue, segura em sua mão seis linhas vermelhas que se assemelham a cordões umbilicais, e na ponta de cada um Frida coloca um elemento simbólico ou representativo do que lhe aconteceu. É como se através deles nos contasse a história do que sucedeu. O osso pélvico que havia sido danificado no acidente da juventude, o feto morto, seu útero infértil também em decorrência do acidente, a máquina que faz referência à fase em que Frida morou em Detroit (e ao próprio hospital, nomeado em homenagem ao criador do automóvel), a orquídea murcha como uma metáfora do seu próprio sistema reprodutivo, o caracol que remete à morosidade (talvez do tempo, que se dilata numa cama de hospital). A paisagem metálica ao fundo e a aridez do ambiente dão a dimensão do desamparo que acometia a artista.
- El Venado Herido (1946): Esta imagem é o mais aterrador e doloroso retrato da solidão decorrente das mazelas do corpo. No meio de uma clareira, num bosque inóspito, o veado sangra alvejado por inúmeras flechas (estas, assim como os pregos, representam as insuportáveis dores físicas). O rosto de Frida está encrustado no animal, uma presa acuada entre as árvores. Imersa em sua intensa dor, não existe companhia, nem consolo, e a esperança é escassa. Nesta obra, Frida escancara que a doença se vive absolutamente só, e que, portanto, diante da total impossibilidade de compartilhar (e talvez até expressar ao outro) esse pesado fardo, tudo ao redor se torna inerte. No momento da dor extrema nos encontramos irremediavelmente solitários, acompanhados apenas do medo e da consciência da própria fragilidade.