No SOS/Ação Mulher e Família, "cuidamos"[1] de mulheres e famílias que apresentam como queixa a violência de gênero e intrafamiliar e que vêm buscar nossa ajuda porque não conseguem sair da situação em que se encontram. Assim, o caso abaixo.
Valquíria[2], uma bela mulher. Jovem, atraente, sedutora, está sempre sorrindo aquele sorriso imenso... E está sempre presente nas pistas de dança. Valquíria consegue dançar a noite toda; sua imensa energia, ela mantém ingerindo muita água. Aos olhos desavisados de quem não a conhece de perto, parece feliz e de bem com a vida.
Ledo engano. Seu travesseiro é que sabe. Seu refúgio mais fiel, ele já perdeu a conta de quantas vezes “consolou” sua dona e enxugou suas lágrimas.
Valquíria quer paz. Não a paz que se encontra na luz, mas a paz das sombras. Assim, tudo que ela quer é ficar deitada, quieta. O mundo lá fora não lhe desperta interesse nem a empolga. O trabalho é cansativo e alienante. Também já mandou embora o último candidato a pretendente que veio lhe declarar seu amor. Valquíria costuma trocar o dia pela noite. Sofre agudamente em seu corpo as dores de sua alma. Que bom seria se o ‘Pai do Céu’ lhe desse o descanso definitivo. Bem que ela tentou. Várias vezes. Mas sempre há um anjo no caminho, que termina por frustrar seu intento.
Dois extremos de um mesmo continuum. De um lado a vida, a saúde, a harmonia, a paz, o amor. De outro, a morte, a doença, o caos, a guerra, o ódio, a violência. O ser humano oscila entre nuances destes dois extremos ao longo de toda sua vida. Na verdade, uma manifestação de um conflito interno, que termina por extrapolar a esfera do intrapsíquico ao ser projetado no exterior e vivenciado, no plano da realidade, nas relações interpessoais, familiares e com o sexo oposto. Assim, Eros (instinto de vida) e Thanatos (instinto de morte) estão em constante oposição e neste jogo interminável, perfazem a sua própria dança.
Conjeturando sobre a gênese do instinto, Freud (1920) assevera que os atributos da vida foram evocados da matéria inanimada por uma força desconhecida. A tensão resultante disso provocou o aparecimento do primeiro instinto, cujo objetivo era eliminar a tensão e retornar ao estado inanimado. Desde então, a morte passou a fazer parte dos objetivos da vida, o que se observa nos tortuosos caminhos para a morte encontrados nos organismos mais elaborados, fielmente seguidos pelos instintos de conservação. Nesta situação paradoxal, o organismo deseja morrer, mas apenas do seu próprio modo; isto faz com que as mesmas forças que preservam a vida também conduzam para a morte.
Vida e morte. Luz e sombra. Binômios que parecem em estreita relação. Da natureza, sabemos que em seu fototropismo positivo, as plantas buscam a luz e dela necessitam para a realização da fotossíntese. Por outro lado, há animais de hábitos diurnos (camaleão, onça, galinha, peru, entre outros) e outros de hábitos noturnos (morcegos, rãs / sapos, gambás, corujas, etc.). Nota-se com isso que há muita vida na escuridão. Pensando no desenvolvimento emocional e espiritual do ser humano, dir-se-ia que este é um animal que também busca a “luz”, tomando o termo no seu mais amplo sentido.
Neste caso, a pergunta é muito pertinente e faz todo sentido: “Por que algumas pessoas parecem insistir em buscar o caminho contrário ao do crescimento, isto é, o da involução? Por que seres humanos parecem preferir permanecer nas sombras?” Pensando em Valquíria, uma alternativa possível seria que esta talvez não se sinta no direito de ocupar o seu lugar no mundo, visto que este lhe foi negado ao nascer (sua mãe a amaldiçoou e clamou por sua morte, mal tinha acabado de sair da escuridão do seu ventre e conhecido a luz do mundo). Assim, aos seus olhos, uma ‘boa’ forma de resolução para a questão seria: “- Já que todos querem que eu morra, então se eu fizer o que todos querem terei paz...”, pensa consigo Valquíria. Por outro lado, atingir a margem oposta do rio e fazer algo diferente do que é esperado de nós pode ser entendido como uma afronta. Será que vamos conseguir sustentar o olhar de assombro dos outros? A opção pela vida, a ousadia de provar de sua plenitude e abundância contém em si certa dose de irreverência. Valquíria, pensando alto: “- Será que vou conseguir trilhar um caminho diferente daquele que conheço? Será que vou conseguir vencer as dificuldades sozinha? Não seria melhor ser a ‘vagabunda’ que todos dizem que eu sou? Ou até mesmo a ‘louca’? E se a luz me cegar? ”.
Valquíria consegue ouvir a voz da luz dentro de si: “- Não tenha medo de crescer; o caminho é seguro. Eu estarei ao seu lado, iluminando tudo...” Por sua vez, a sombra tenta falar mais alto: “- Você não vai dar conta de pagar o aluguel sozinha. Fique ao lado de sua mãe; este lugar sim, é seguro. Quem sabe ela ainda te ama?”.
Na dúvida, Valquíria fica paralisada. Assim tem estado ao longo de vários anos. Enquanto isso, aquela velha tendência autodestrutiva vai corroendo não só a sua autoestima e a sua autoconfiança, como também a sua saúde.
Este é o drama humano, protagonizado por Valquíria.
Cada qual com suas especificidades, a busca do ser humano pela luz é cheia de tropeços, que retardam e impedem de chegar ao objetivo. Para tanto, é preciso reconhecer o conflito interno. Saber que personagens habitam nas sombras de nosso psiquismo (o inconsciente) e ali se fortalecem e criam raízes porque nunca foi lançada sobre eles a luz.
Sim, é preciso nos conhecer, antes de mais nada. Conhecer, sobretudo, nossos demônios psicológicos. Olhar no fundo dos seus olhos e ver que, afinal de contas eles não são assim tão terríveis. Não passam de criações humanas; nós as utilizamos para fundamentar nosso medo de viver plenamente. O autoconhecimento nem sempre diminui ou elimina nossas angústias. Ao contrário, na maioria das vezes, só faz por maximizá-las.
Conviver com a angústia talvez seja uma condição essencial no continuum luz - sombra. Parece até quase impossível se esquivar da dor inerente ao crescimento. É complexo, ser pessoa.
Referências
FREUD, S. - Além do princípio do prazer. In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1980/1920, v. XVIII, p.51-85.
[1] A palavra ‘cuidar’ está sendo utilizada no sentido mais amplo possível e inclui não só os atendimentos jurídico, psicológico e social, propriamente ditos, mas uma consideração positiva incondicional à usuária, o respeito e a valorização à sua condição de pessoa e cidadã, a crença na sua capacidade de apropriação da vida. Pressupõe o estabelecimento de uma forte aliança com sua parte saudável, de forma que seja engendrada uma matriz favorável à mudança e ao desenvolvimento biopsicossocial.
[2] Nome fictício.