Perceber é conhecer pelos sentidos. Cheguei a esse conceito graças à unificação feita pelos gestaltistas alemães, entre o que se chama sensação e percepção. Para eles não havia uma sensação captada pelos sentidos e uma percepção organizadora desses dados sensoriais. Não existiam duas funções: uma de captação e outra de organização. O que se sentia era o que se percebia e já era organizado. A abordagem dualista anterior implicava em um elementarismo fundamentado na ideia de que o todo é a soma de suas partes e, bahavioristas e psicanalistas, também eram adeptos dessa visão: os primeiros, quando reduziam o comportamento humano aos processos de aprendizagem resultante do condicionamento dos reflexos incondicionados e os segundos, ao explicar toda a vida emocional e sexual do homem pelos processos inconscientes, para eles o fundamento e motivo de toda vivência humana.

Essas abordagens implicavam em entender o homem separado do mundo, antagônico à sociedade, ao mundo. Os behavioristas tentavam resolver essa separação através dos conceitos de adaptação e condicionamento e os psicanalistas, através dos conceitos de conscientização e sublimação dos desejos.

Ao iniciar meu trabalho psicoterápico no final dos anos 1960, era isso que existia no campo da psicologia clínica.

Beneficiada pelos conceitos gestaltistas e fenomenológicos, eu sabia que o homem no mundo é uma gestalt, uma unidade e que o todo não é a soma de suas partes. Essa visão me possibilitou perceber que é através do processo perceptivo que o homem estrutura relacionamentos, e então comecei a criar conceitos e a desenvolver a teoria que fundamenta a psicoterapia gestaltista. Ao longo de 38 anos, desde que escrevi o primeiro livro sobre psicoterapia gestaltista, venho desenvolvendo o conceito de percepção.

Neste novo livro, Linguagem e Psicoterapia Gestaltista, explico o processo da linguagem, a estruturação da língua e da fala, pela percepção. Vemos que falar é expressar a organização do percebido. Linguagem é a maneira do ser humano se expressar, se comunicar, se exteriorizar. Linguagem é o desenho, a imagem, a representação, o resumo, as senhas do que se percebe. Linguagem é descrever, é informar. Fala-se porque se percebe e é percebido. A linguagem é construída pelo relacionamento com o outro e o mundo. Cada língua expressa tempo e espaços característicos. A história da humanidade foi contada graças às línguas estabelecidas. Nossa história, nossas vivências podem ser expressas, compartilhadas através da linguagem.

Portanto, neste novo trabalho, continuando o desenvolvimento de percepção como conhecimento, como "perceber que percebe" - categorização - e entendendo o pensamento como prolongamento perceptivo, deixamos claro que a percepção é estruturadora da linguagem e mantemos assim, o conceito de que vida psicológica é vida perceptiva. Na linguagem isso é enfático.

No desenvolvimento de minha teoria, senti necessidade de explicar a percepção como contexto para a construção e formação da linguagem. A linguagem decorre da percepção, ela não é, como afirmam alguns teóricos, estrurante de realidades.

A fala na psicoterapia é um dos desenhos, das digitais mais individualizantes do ser humano. Fala, que te direi quem és. Ao falar expressamos nossa maneira de perceber o outro, o mundo e a nós próprios. Falando da problemática que nos aflige mostramos nossas vivências, nossas distorções, nossa autorreferência, nossas dúvidas, medos e anseios.

A linguística, o estudo da linguagem, desenvolve-se há mais de um século com seus grandes especialistas. Ferdinand Saussure, criador da linguística, foi quem fez a distinção entre langue e parole - língua e fala - dedicando-se a entender as questões de significado e significante. Chomsky explica a construção de uma gramática única como fundamento do processo linguístico. Louis Hjelmslev e outros fenomenólogos seguiam a linha que enfatiza o que é imanente, o que é transcendente na linguagem. Edward Sapir, antropólogo e linguista influenciado por Franz Boas, pesquisando em culturas indígenas, procurava compreender como se forma a língua. Hegel dizia que a linguagem é a atualidade da cultura; assim fica assinalado o aspecto comunicativo e trancendente da linguagem. Na tradição hinduísta, nos Upanishads, vemos que o sentido da linguagem é possibilitar a distinção de valores e significados. Se não existisse linguagem, não poderíamos conhecer nem o bem, nem o mal, nem o verdadeiro, nem o falso.

Dizer que a boca, a língua, a laringe são órgãos da fala é tão tolo, tão errado quanto dizer que o dedo é o órgão de tocar piano. Algumas estruturas neurológicas quando lesadas ou comprometidas interferem ou mesmo impedem a fala. O processo de formação da linguagem é perceptivo, portanto fundamentalmente psicológico, e como tal, garantido por estruturas neurológicas. Essa isomorfia entre o neurológico e o psicológico assegura os processos perceptivos.

A língua é sempre expressão de uma sociedade, uma cultura, uma época vivenciada por grupos humanos. Cada língua que desaparece evidencia como ela é fruto da relação com o mundo, com o percebido. Novas tecnologias, importação das mesmas, novas vivências e necessidades criam novas palavras. Com a internet muitas línguas e dialetos são insuficientes para expressar as novas relações percebidas.

A língua expressa e comunica vivências, pensamentos, faz com que o outro perceba além do olhar e do tato, e seja também percebido.

Este livro expressa os desdobramentos do conceito de linguagem e de como ela se estrutura. É mais um referencial para perceber as configurações do humano, os desenhos e trajetórias realizadas pelo ser no mundo. Penso a linguagem a partir da percepção.

Fernando Pessoa, pelas mãos de seu "mestre" Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos, poeticamente também fala da percepção:

“Sou um guardador de rebanhos.
O rebanho é meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê¬-la e cheirá-¬la
E comer um fruto é saber-¬lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá¬-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.”

Referência:

  • Este artigo é extraído do meu livro Linguagem e Psicoterapia Gestaltista - Como se aprende a falar - Vera Felicidade de Almeida Campos, Editora Ideias & Letras, São Paulo, 2015