Dizia Oscar Wilde que toda a arte é simultaneamente símbolo e superfície, e os que ousam ir abaixo da superfície, fazem-no por seu próprio risco. Eu estive sempre de acordo com ele mas hoje a questão é mais complexa. Passamos os dias a interagir com dispositivos que nos pedem para actuar num contacto contínuo com a sua pele, que somos convidados a tocar, esfregar, tactear, para nos podermos relacionar com tudo o que está sob a superfície desta pele/deste guia, ou seja, com os conteúdos e as mensagens que quotidianamente sobrecarregam a nossa vida.
Não pude deixar de pensar em Wilde e nos dispositivos que hoje em dia guiam e dão forma ao nosso quotidiano a partir do momento em que vi esta última série de trabalhos de Carlos Noronha Feio. O núcleo principal da exposição é composto por uma série de pinturas, nas quais o artista começa por imprimir a tela com imagens de fotografias retiradas de um livro ou, provavelmente deverei dizer, de um manual, um guia, destinado a instruir os militares americanos relativamente aos hábitos das populações do Oceano Pacífico com os quais teriam interagido durante e após Segunda Guerra Mundial. São fotos que vão desde as mais clássicas representações de tipo antropológico / educativo, nas quais vemos situações retiradas da vida de uma aldeia, actividades de subsistência, e rituais; e outras nas quais vemos grupos a empreender marchas ou actividades militares. Trata-se, obviamente, de um livro escrito desde um ponto de vista ocidental, à luz, também, do contexto no qual tinha sido feito e para o qual tinha sido pensado. Cada uma das imagens seleccionadas cobre a tela e torna-se a base sobre a qual o artista pintou a posteriori. Primeiro aplicando uma velatura de cor branca que deixa transparecer a fotografia do fundo, mas que permite ao mesmo tempo ler como independentes os signos coloridos que são apostos e compostos na última fase de laboração. São traços e manchas de tinta, algumas geométricas e precisas, outras mais orgânicas, feitas utilizando cores alegres e muitas vezes primárias. Muitos desses signos pictóricos são linhas ou barras, por vezes lembram ripas alongadas e dobradas em formas diversas. Em alguns casos parecem dissolver-se ou animar-se em espirais delicadas com elegantes floreios. Assim como os fundos e as formas geométricas, cada signo parece infectar-se e degradar-se numa dimensão maioritariamente informal, sfumata, feita de ar, de fumo ou de vapor de água. Mas nada é casual, pelo contrário, a composição pictórica é sempre de uma perfeição e de um equilíbrio total, controlado, deliberadamente elegante. Por um lado lembra um certo tipo de abstracção derivado do surrealismo (Miró por exemplo) por outro, em outros pontos (provavelmente pela lembrança bélica das imagens) as composições suprematistas de Malevich. São portanto duas as superfícies de diálogo, intercaladas por uma velatura subtil de neblina branca pictórica, nem transparente nem obscurecedora, mas opaca e porosa.
O estrato que está na base é feito de uma temática que hoje em dia não pode não lembrar questões ligadas ao pós-colonialismo, à história de todo o Ocidente e, portanto, também de Portugal, à eterna questão da nossa relação com tudo aquilo que o Ocidente não é. Mas a nível artístico e iconográfico, não consigo deixar de pensar que aquele que provavelmente terá preparado maioritariamente o conceito de Extremo Oriente, com respeito à modernidade e à prática pictórica, seja Gauguin. Um artista que, não por acaso, conseguiu transportar a arte para fora do território do Impressionismo e levá-la para o campo do simbolismo e da atenção para uma dimensão barbárica, mágica e primitiva. Isto resultou no Surrealismo e não só. E desde esses primeiros momentos de relação com uma dimensão “pacífica” emerge como este mundo primitivo mas não “africano”, em alguns aspectos ainda mais longe e “outro”, tenha levado a arte para uma outra dimensão epidérmica, deliberadamente superficial, feita de sobreposições de diversos planos. Como se o contacto com uma pele diferente da nossa nos tenha levado a mudar a própria percepção da pele pictórica.
Mas o verdadeiro problema é que a nossa relação com o Extremo Oriente e com toda a área do Pacífico mudou completamente após a explosão nuclear que pôs fim à Segunda Guerra Mundial. Caso alguma vez o tenham sido, naquele momento esses lugares deixam de ser vistos como um fragmento esquecido do paraíso terrestre. A partir daí, o mesmo conceito de pele e de epiderme tornou-se, na maior parte dos casos, superfície sintomática na qual cada signo podia ser unicamente signo de doença e degeneração. Tenho sempre presentes as imagens do filme Hiroshima mon amour, com as suas observações sobre o olhar e a impossibilidade de ver algumas coisas: a pele dos dois amantes que se tocam nas imagens interrompidas continuamente pelas imagens de hospitais, doentes, destruição.
Também estes signos que voam e emergem nas superfícies pictóricas de Carlos Noronha Feio, vivem de um movimento ambíguo que faz deslizar o seu sentido desde uma dimensão decorativa formal até às degenerações cutâneas, queimaduras e incisões na pele de um significante fotográfico claramente dotado de mais-valias políticas, linguísticas e humanas. A própria ideia de decoro formal, acompanha toda a modernidade como um elemento simbólico daquela que é a decadência e a degeneração doente do Ocidente e da sua arte como se fosse uma prótese inútil aplicada à sua essência. E estes elementos “apoiados” de forma ordenada na superfície das telas acabam por transformar-se em instrumentos que modificam e operam na própria pele da fotografia subjacente. Exactamente como nos nossos dispositivos electrónicos, sabemos que existe uma quarta parede de vidro entre nós e o conteúdo, e é nessa quarta parede, que tocamos e esfregamos continuamente de forma sensual, que se encontram os instrumentos para veicular o conteúdo. Instrumentos que deixam uma pegada sobre este pó branco pictórico conservado nas fotografias, da mesma maneira que nos Rayograph: os objectos imprimiam-se na película sensível após as investidas da luz, e nas quais as linhas poderiam ser cicatrizes ou os 3 Standard Stoppages, que de signo transmutam-se para corte de bisturi.
Estas “ferramentas informais” criadas pelo artista, são recolhidas em desenhos sobre um papel muito matérico e bruto. Estes, são uma espécie de tabelas de um catálogo, dicionários, dos quais o artista parece ter-se apropriado para compor as pinturas. Assim como o ornamento, o mesmo conceito de instrumento torna-se uma prótese aplicada ao corpo humano capaz de se tornar fonte de perversão e fetiche, como nos ensina alguém experiente nos encontros entre o Ocidente e o Oriente, e de estranhas luzes e estranhos soís: James Graham Ballard. Finalmente a própria ideia de instrumento ou de técnica enquanto expansão do humano, não é outra coisa senão o ornamento da nossa vida, um acrescento não essencial a uma essência que não é feita de anos ganhos graças à medicina, do número de países visitados ou de informação obtida rapidamente através de uma banda larga. Então conseguimos que a prótese tecnológica volte à esfera do humano no momento em que volta a ser objecto de desejo per se, fonte de perversão, espaço de pornografia (pura e por isso sagrada) não mero instrumento para obter resultados secundários.
Texto de Antonio Grulli, Agosto 2015