Uma questão que o ser humano tenta responder há séculos é a de quem somos realmente, por isso estudos nos mais diversos campos buscam respostas para essa pergunta, sendo objeto de estudo da neurociência à filosofia. Porém, nos dias de hoje não apenas essa questão parece substancial ao ser humano, há outra que tem se mostrado cada vez mais incisiva: o que queremos? Essa dúvida tem se tornado uma espécie de mal do século. Com o intuito de achar uma resposta, o homem moderno vem semeando males, tais como: busca constante por prazer e reconhecimento, individualismo, intensificação das sensações, fragilidade das relações e inconformismo. Há pouco mais de um século surgiu uma denominação para essa sensação de insatisfação persistente do ser humano moderno: o “bovarismo”. Tendo por inspiração o romance do escritor Gustave Flaubert, Madame Bovary, o filósofo francês Jules de Gaultier definiu o conceito de bovarismo como “o poder atribuído ao homem de conceber-se outro”.

No livro, Emma Bovary é uma mulher sonhadora, presa em um casamento insípido e que aprendeu a ver o mundo através de seus romances de juventude. O romance foi pioneiro na abordagem do moderno subjetivismo.

Em termos clínicos, o bovarismo é descrito como uma deformação do sentido da realidade, tendo o indivíduo uma auto-imagem alterada, supervalorizada, onde se vê como uma pessoa dotada de atributos os quais não correspondem à realidade. Geralmente é associada à uma forma de mitomania, o que impede a autocrítica levando os mesmos a permanecer na visão distorcida de si, prejudicando o autoconhecimento.

Atualmente o termo bovarismo é utilizado de uma forma mais genérica para descrever as pessoas que ambicionam por uma vida diferente das suas, idealizada e compensatória. Se caracteriza por um estado de insatisfação crônico em consequência de anseios desproporcionais à própria realidade, onde o indivíduo passa a agir como se possuísse as condições de vida que almeja e cria, dessa forma, uma personalidade imaginária.

Segundo Gaultier, o bovarismo não é contudo uma fuga da realidade, e sim, uma tentativa de estar na realidade com aspectos da ilusão criada para si embutidos nela. Essa relação conturbada com a realidade de uma forma geral ou com certos aspectos dela, é o ponto central do bovarismo.

O escritor e crítico literário, Jean-Pierre Richard, define o bovarismo como sendo “o movimento de um ser que, incapaz de descobrir um pouso, escolheu viver em um desequilíbrio prolongado”, e retifica a definição de Gaultier, caracterizando o bovarismo como uma “impotência de conceber-se como quem quer que seja”, ou seja, no “mal de não ser ninguém”.

O bovarismo cria um mecanismo de engano que é sustentado constantemente. O indivíduo pretende não enxergar o seu jogo de ilusão, e para se tornar mais convincente tende a imitar, por exemplo, as maneiras de agir, falar e vestir do modelo idealizado. A escolha desse modelo emerge do meio social e cultural do indivíduo bovárico, sendo um procedimento de plágio que mais cedo ou mais tarde ruirá. A eficácia e duração desse sistema vai depender do quão distante esse modelo idealizado está do ser bovárico.

Os dilemas resultantes do bovarismo são um tanto quanto previsíveis: frustração, e em alguns casos, depressão. Ambos, advindos da incapacidade de se atingir as metas e objetivos colocados para si, pois o indivíduo bovárico carece das características e predicados necessários para alcançar os seus propósitos, já que os mesmos são traços idealizados de sua personalidade. O bovarismo se torna prejudicial à medida que é baseado em contradições e hipocrisias. Eles tem a certeza de que ninguém mais do que eles merece um futuro especial, vendo-se como heróis de um romance ou filme e abdicando da vida real em função de seus devaneios. Suas vidas são intermináveis altos e baixos, entusiasmo seguido de tédio, carecendo de um momento de avaliação de si e de seus sentimentos, de estabelecimento do real. Na falta disso, nada será o bastante ou satisfará por muito tempo.

O bovarismo é ainda mais acentuado e intenso na juventude, onde a ausência de uma personalidade definida e a constante influência do meio social fazem com que os jovens queiram continuamente se tornarem outros. Além disso, a internet e seus ciber-espaços e ciber-relações criam um novo conceito de realidade. As pessoas podem tornar-se outras e se relacionarem com outros indivíduos no ambiente virtual, gerando experiências reais em um mundo virtual. O espaço virtual se tornou o mecanismo utilizado por um número cada vez maior de pessoas para interagir com amigos e familiares, buscar informação e distração, partilhar opiniões e se expressar. Em muitos casos essa conexão com o universo virtual se dá de tal forma que o indivíduo toma como real o seu eu criado no espaço virtual, criando uma dissociação e insatisfação constante com o seu eu no mundo real. Esse fenômeno pode ser chamado de “bovarismo virtual”.

Existe também o bovarismo típico da infância, onde a criança ainda em processo de formação de sua personalidade se espelha em modelos idealizados e influências do seu meio social e familiar para se definir. É próprio a devoção à figuras do imaginário fantástico e imagético como, por exemplo, super-heróis; e a criança atribui-se qualidades e habilidades que considera dignas de seus modelos de veneração. Esse chamado bovarismo infantil, com suas características particulares tende a desaparecer com o crescimento da criança, porém não é uma regra.

Gaultier cita inclusive o bovarismo típico de pessoas que se consideram excepcionais, chamada por ele de esnobismo. Nele, o indivíduo tenta esconder a sua falta de aptidão e talento utilizando-se de uma máscara de superioridade e arrogância. Essa dissimulação o faz acreditar estar talhado para coisas maiores e melhores, e a fim de não destruir essa fachada de genialidade os indivíduos esnobes não se arriscam, não entram em território desconhecido, não criam. Tendem a admirar o que é senso comum, o belo, o artístico, porém o exótico, o excêntrico e incomum são seus temas favoritos, pois assim eles preservam a sua fantasia de especialistas, evitam críticas e escondem a sua limitação e mediocridade. Sua farsa gira em torno de uma atitude, um comportamento, em nunca explicar-se. Ele menciona ainda um bovarismo metafísico, que seria aquele que se nota na recorrente sensação de vazio relatada pela personagem Emma Bovary.

A psicanálise por sua vez apresenta o bovarismo como algo comum a todos, pois argumenta que os seres humanos estão sempre alternando entre os sonhos e a realidade, entre o que idealizam e o que são de fato. O psicanalista Jacques Lacan utiliza-se do conceito para discorrer sobre a personalidade humana, alegando tratar-se de uma função essencial do ser humano. O mesmo já possui inerentemente uma capacidade de projeção de realidades, sentimentos e formas de pensar que servem de critério de comparação, avaliação e criação. Origina-se dessa projeção um processo de imitação que se não estiver em equilíbrio com as predisposições físicas, intelectuais e existenciais do próprio indivíduo, estará destinado ao fracasso.

O filósofo René Girard define o bovarismo flaubertiano como sendo uma das formas do desejo segundo o Outro. Segundo ele, a história do romance ocidental seria a história da manifestação do “desejo mimético”, definido como sendo um desejo triangular no qual o homem deseja através de um mediador que aponta para o objeto que deve ser motivo de desejo. Há, no entanto, aqueles desejos que são espontâneos no indivíduo, como a fome, a sede e o desejo sexual, porém após a sua satisfação, o homem passa a desejar algo que não tem como definir, algo do qual sente-se privado ao contrário de outros. Esse desejo peculiar distingue-se por ser volúvel e de surgir de um objeto de imitação.

Porém para Gaultier, o bovarismo tem o seu lado positivo e produtivo, o qual seria o de manter o ser humano evoluindo, em movimento. Conhecimentos e descobertas são transmitidos levando ao surgimento de novas invenções sem precisar partir-se do zero. Esse processo tira proveito da essência bovárica de absorver algo que não é próprio do indivíduo e tomá-lo como seu, nesse caso, a sabedoria de terceiros. Ademais, a noção de metamorfosear-se está ligada ao sentido de tornar-se outro, e dessa forma, progredir.

No fim, o que o homem está sempre buscando para si são desafios, emoções e prazeres diferentes, que uma vez alcançados, são substituídos por outros. O indivíduo se remodela, adquire conhecimento, cria necessidades distintas, mas o descontentamento e a insatisfação permanecem. O crescente materialismo e consumismo do mundo contemporâneo pode ser analisado como uma busca por suprir um vazio existencial do próprio ser e encobrir a sua realidade enfadonha.

Se o bovarismo será empregado para o progresso individual ou para a criação de um ser caricato irá depender da intensidade e da forma com a qual ele será absorvido. Não podemos negar, entretanto, que vivemos todos em uma sociedade estritamente bovárica. Afinal, como diria o filósofo françês Roland Barthes, “[...] nous sommes tous des Madame Bovary”.

Referências

Gaulter, Jules. Le Bovarysme: mémoire de La critique. Paris: Presses de l´Université Paris-Sorbonne, 2006.
Hossne, Andrea Saad. Bovarismo e romance: Madame Bovary e Lady Oracle. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000.
Brayner, Sonia. Labirinto do espaço romanesco: tradição e renovação daliteratura brasileira, 1880-1920. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.