A cada vez que a antiga porta de madeira se abre, em mais uma tarde de domingo, nova turma de visitantes é recebida com um largo sorriso, por uma guia que não esconde a paixão por seu trabalho num dos quatorze teatros-monumento do Brasil....
O grupo é levado a percorrer camarotes, corredores, palco e coxia do Teatro de Santa Isabel e a conhecer sua história, contada com entusiasmo e encanto, numa “conversa” animada, pelo tempo afora, a imaginar o comportamento, a pompa e circunstância da aristocracia canavieira do século XIX e início do XX, em Pernambuco.
O mais antigo e expressivo exemplar da arquitetura neoclássica do Recife está implantado diante da Praça da República, no bairro de Santo Antônio, no centro da cidade. O teatro foi inaugurado em 1850, sob projeto e construção do engenheiro francês Louis Léger Vauthier, que veio da França a convite de Francisco do Rego Barros, o então Barão da Boa Vista, governador da província, especialmente para sua construção.
A ágora em frente ao teatro é um espaço mais que convidativo à contemplação do Santa Isabel e dos outros três elementos que, juntos, formam o rico conjunto arquitetônico do seu entorno: o Palácio do Campo das Princesas (1841), o imponente edifício do Palácio da Justiça (1930) e o Liceu de Artes e Ofícios (1880).
A relação que se estabelece entre os monumentos e a praça é claramente “de fora para dentro” ... De quem passa, de quem nela está, ser convidado a, naturalmente, observá-los e conhecê-los.
As origens da Praça da República remontam ao século XVII, quando Maurício de Nassau, governador do Brasil holandês, mandou plantar as primeiras árvores no exterior do Palácio de Friburgo, que existia no local onde hoje se situa o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo estadual. O batismo da praça numa homenagem à República só se deu em 1890, um ano após a proclamação da nova forma de governo no Brasil.
O ambiente é um “oásis” de calma na agitação da cidade. Espaço aberto e ao mesmo tempo acolhedor; é comum ver pessoas sentadas nos bancos de concreto ou de madeira, em meio às altas árvores (inclusive um esplendoroso e secular baobá) e palmeiras imperiais, enquanto o caótico trânsito urbano segue em várias direções e sentidos, ao seu redor. E um ponto de destaque nessa paisagem é o belo Teatro de Santa Isabel...
Originalmente idealizado por Rego Barros, que estudara Matemática na França, como “Teatro de Pernambuco”, teve seu nome alterado em 1849, no final de sua construção, como forma de homenagear a Princesa Isabel, filha do Imperador D. Pedro II. Aquela mesma que assinaria anos mais tarde, em 1888, a Lei Áurea, abolindo a escravatura no império.
A princesa Isabel estava com cinco anos de idade à época da inauguração do Teatro e foi por esse motivo que a cor escolhida para as paredes externas foi o rosa... Sim, esse edifício de linhas neoclássicas puras, composição equilibrada, marcações em pedra calcária e gabarito imponente traz suas paredes em um singelo cor-de-rosa desde sua fundação.
A manchete do Diário de Pernambuco (o mais antigo jornal em circulação na América Latina) sobre a inauguração do teatro fazia a seguinte afirmação: “traz a marca do novo e do monumental” ... E o espetáculo de estreia foi um drama: a peça “O Pajem D'Aljubarrota”, do português Mendes Leal.
Segundo nossa simpática guia, o Recife de meados do século XIX contava apenas com um teatro popular, situado na atual Rua do Imperador Pedro II. Era um ambiente tosco, simples, frequentado por uma população nada “aristocrática”. O nome do teatro? “Capoeira” ... Portanto, ao estudar na Europa, o então governador da província, conhecendo os belos teatros do velho mundo, teria descoberto uma necessidade imediata para a cidade e para sua gestão: A construção de um ambiente “à altura” de uma burguesia ascendente e que jamais poderia se “misturar”, frequentando um teatro popular e empoeirado, onde negros e pobres se divertiam em suas horas vagas.
Imaginemos o impacto causado no ambiente urbano em formação pelo surgimento de um edifício tão imponente, num Recife cujo tecido urbano ainda se estabelecia, espontaneamente pelos arrabaldes e, cartesianamente, através das reformas urbanísticas e modernizações implementadas no centro por Rego Barros.
E não foi fácil construir o Teatro. O governador recebeu duras críticas pelos altos gastos com o projeto; pela vinda do engenheiro, dos auxiliares e de todos os materiais. Tudo veio da Europa e o ambiente reluzia e respirava luxo. Absolutamente tudo: os cristais de Murano nos visores dos camarotes, o mármore de Carrara do piso, o ferro da Inglaterra na estrutura e gradis, etc.
Vauthier não viu de perto o Teatro de Santa Isabel pronto... Conta-se que sofreu perseguições em todo o período em que esteve na cidade, principalmente após a saída de Rego Barros do governo; quando sua permanência se tornou impossível. Então, após anos à frente da construção do teatro, retornou à França. Orientou de longe a conclusão das obras e também sua reconstrução, após o incêndio que o destruiu em 1869... Exatamente: o teatro incendiou dezenove anos depois de sua inauguração.
Da França, Vauthier permaneceu orientando os construtores. Numa era sem satélites, sem internet, sem telefone; apenas por correspondência...
Além do Teatro de Santa Isabel, o engenheiro produziu no Recife obras como o Mercado de São José (arquitetura de ferro) e atual sede da Academia Pernambucana de Letras, deixando na cidade pela qual, dizem, afeiçoou-se, a sua marca. Na Praça da República existe uma escultura do artista Abelardo da Hora que retrata o engenheiro e na placa afixada aos pés da peça, um texto do escritor Gilberto Freyre (autor de Casa Grande & Senzala) traz a seguinte mensagem: “Louis Léger Vauthier amou o Recife, cidade a que serviu devotadamente de 1841 a 1848 com a sua ciência, com a sua inteligência e com o seu humanismo. O Recife lhe é grato. Gilberto Freyre. 7-10-1974. Administração Augusto Lucena”.
Consta que após a inauguração do teatro, as pessoas passaram a adquirir os camarotes. Isso mesmo: os camarotes eram comprados e alugados. Houve quase um loteamento entre as famílias ricas da cidade. Dos andares mais baixos aos mais altos (estes com menor visibilidade do palco), a riqueza dos adornos e trabalhos em ferro dos guarda-corpos ia diminuindo e os cidadãos iam se “distinguindo” por classe socioeconômica.
Do ponto de vista social, o Santa Isabel trouxe muitas novidades num momento em que a sociedade buscava se “afrancesar” na moda, nas leituras, nos gostos... A comunidade, cujo único divertimento era ir à igreja e casa de amigos, passou a vivenciar uma efervescência cultural, num teatro aos moldes europeus... Para os pernambucanos, tudo era novo, brilhante e vivo. A burguesia tropical se enfeitou de sedas e se cercou de pompas para se “sentir” em Paris. Os costumes se transformaram sob essa nova perspectiva, gerando uma forte mudança sociocultural... Excetuando-se o calor, que deve ter gerado “bicas” de suor nos camarotes, estar no teatro era, para aquela população, “quase” como estar na França.
Um fato marcante registrado na história do teatro foi a comemoração do aniversário do Imperador D. Pedro II, em 1859, com uma ópera. Também, certa vez, foi montado um tablado sobre as poltronas para a realização de um baile de carnaval, na mais forte tradição pernambucana... Imaginemos um grande piso, sobre estrutura de madeira, instalado sobre as poltronas da plateia, ao nível do palco, transformando o interior do teatro num grande salão de baile... Pois isso aconteceu!
Sete anos após o incêndio, o Santa Isabel foi reinaugurado com o espetáculo “O baile de máscaras”, de Verdi, apresentado pela Companhia Lírica Italiana Thomas Pasini.
No seu palco de 120m2 se apresentaram nomes ilustres como a bailarina russa Ana Pavllowa e grandes companhias de ópera e teatro. Após os espetáculos, também era comum se ver torneios de oratória e o mais famoso “duelo” conhecido foi o que aconteceu entre o poeta Castro Alves e Tobias Barreto, cada um deles defendendo uma atriz (Eugênia Câmara e Adelaide Amaral, em respectivo).
Em 1906 foi a vez do Teatro receber os cinematógrafos e dez anos depois foi reformado, passando a ter luz elétrica.
Outra grande função que o edifício naturalmente assumiu foi a de concentrar os grandes acontecimentos políticos. Os estudantes de Direito, por exemplo, muitas vezes saíam da Faculdade de Direito do Recife e se dirigiam ao teatro para discussões e debates políticos sobre a luta pela abolição e pela República... O próprio Rui Barbosa, alguns anos após a Proclamação, discursou em seu palco em campanha à presidência da República.
Há uma frase cunhada pelo político, diplomata e escritor brasileiro Joaquim Nabuco (1849-1914), pernambucano, grande abolicionista, a qual resume a grandeza dos fatos que ocorreram no interior do edifício: “Ganhamos aqui a causa da abolição” ... Nas galerias do Santa Isabel foi erguido um busto em homenagem ao escritor e afixada uma placa com a frase histórica. A importância da vivência que se deu no interior do teatro ultrapassa em muito os limites da cidade ou do estado, pois teve reflexos para a cultura e a história do Brasil.
Houve uma época, principalmente no início do século passado, em que o Santa Isabel funcionou quase como um salão de eventos para a burguesia do Recife. Nele, realizavam-se bodas, debus, velórios, festas... Era quase como um clube privado, posto que a grande maioria da população, composta por pobres e negros, a ele não tinha acesso...
¬Em outubro de 1949 o teatro de Santa Isabel foi tombado pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e passou a ser cuidado como “teatro monumento”. O tombamento veio a disciplinar o uso do edifício. As portas passaram a ser abertas apenas para reais objetivos artísticos e culturais e o acesso foi democratizado.
O local serviu, literalmente, de palco para grandes transformações sociais. Se à época de sua inauguração e por muitas e muitas décadas, era espaço privado, atendendo aos interesses e fazendo a festa para uma minoria “aristocrática” da cidade; hoje abre suas portas, por exemplo, para as apresentações gratuitas da Orquestra Sinfônica do Recife, oportunizando o acesso à arte e à cultura a todos os públicos, como deve ser.
A Orquestra nasceu no Santa Isabel, sob a batuta do maestro Vicente Fitipaldi em 1930 e até hoje tem sua sede no Teatro. Atualmente é regida pelo Maestro Marlos Nobre e atua também em formação de plateia, com concertos e ações educativas voltados para a inclusão cultural.
Ao longo do tempo, o edifício sofreu algumas reformas e foi climatizado, superando-se o problema do calor. Recebeu facilidades tecnológicas quanto a som e luz, mas o clima de beleza invulgar que já existia permaneceu intocado...
No rosa pálido de suas paredes externas ou no rubro vivo de seus carpetes, o Santa Isabel traz orgulho à paisagem cultural do Recife e estende seu tapete vermelho a todas e todos que o visitam. Mas há também um lado “folclórico” nas páginas sobre o Teatro: histórias de “fantasmas” que já inspiraram livro e que vêm sendo contadas por gerações...
Fala-se sobre um maestro que, durante o incêndio de 1869, teria se ferido tentando salvar um piano e ficado com sequelas nas pernas, o que o fizera necessitar de apoio para andar pelo resto da vida... Mas o piano foi salvo e até hoje espera, nos porões do edifício, por restauração... Uns contam ouvir sua bengala sobre o palco e pelas escadas; outros afirmam tê-lo visto circulando, à espera de cheguem para restaurar o piano, quando então poderia “descansar”...
Conta-se também de uma bailarina que passa dançando pelo palco. Diz-se que ela, ao dançar, teria sem querer derrubado um lampião a gás, causando o grande incêndio de 1869... Mas há controvérsias quanto a isso, pois no dia do acidente a apresentação era de uma ópera, e não havia bailarinas no elenco...
E assim vão seguindo pelo tempo afora as histórias do Santa Isabel, povoando o imaginário coletivo do Recife. Histórias da política, da burguesia e do povo. De princesas, imperadores, escritores, bailarinas, maestros, estudantes, fantasmas... Bailes de encanto, fatos e sonho. Mas, sem dúvida, a história de uma obra de arte.
Neste 18 de maio de 2015 o Santa Isabel completa 165 anos, numa cidade de 478 anos feitos recentemente. Foi nele que se escreveu grande parte da história artística, cultural e política do Recife. Um elemento de Arquitetura que induziu comportamentos sociais e chamou a população para novos hábitos... O exemplo claro de como a intervenção sobre o espaço pode gerar o encontro (ou a separação), contribuindo para seu crescimento ou decadência. Para inclusão ou exclusão e para chamar a admirar o belo e com ele aprender.
Com um pouco de imaginação e emoção, pode-se ouvir o farfalhar de saias, os estouros dos frisantes nos ricos camarotes e os brados pela abolição da escravatura no Brasil, vindo dos estudantes, do último andar... Solos de soprano, o rodopio de bailarinas sobre pontas ou de passistas do frevo de Pernambuco trazido das ruas para o palco do teatro; num giro multicolorido, como o da sombrinha da dança, a equilibrar o passado e o presente, o popular e o erudito...
Este é o Teatro de Santa Isabel. Espaço mágico, de grandeza cultural, que traz traços fortes do Brasil de ontem e se abre para o futuro, para encantar novas gerações.
Links interessantes
Site oficial do Teatro de Santa Isabel : http://www.teatrosantaisabel.com.br/home/index.php
Visão do interior do teatro em 360°: http://www.teatrosantaisabel.com.br/conheca-o-teatro/teatro360.html
Reportagem em canal de TV pelos 162 anos do teatro (2012): https://www.youtube.com/watch?v=RDydYyg2xec