Quando você está escrevendo, você está invocando alguma coisa. É um ritual. Você precisa ser bravo e respeitoso e às vezes sair da frente do que quer que você convidou para entrar no quarto.
Escrever... é caçar pássaros sem matá-los.
(Tom Waits)
Para as mulheres que querem escrever e ser escritoras, só posso dizer: vocês não vão ter uma vida simples nem comum. Não se iludam, meninas. Quem quer escrever de verdade tem que viver como uma escritora. E viver como escritora inclui uma entrega absoluta a experiências inusitadas, uma atenção obsessiva às pessoas e uma observação permanente a tudo o que nos rodeia. A escrita requer abandono, improviso, imaginação, capacidade infinita de fabulação e uma técnica que não se aprende fora do exercício diário com as palavras.
Alguns homens vão se apaixonar por vocês, minhas amigas, porque acham o máximo uma mulher escritora. Acham excêntrico, por vezes, exótico. E vão se desapaixonar pelos mesmos motivos. Um dia que vocês não fizerem a omelete que ele tanto ama, porque estão atrás de um conector adequado para o conto em andamento, o amor acaba. O único imenso amor que vocês poderão experimentar será o de uns poucos leitores e este amor será verdadeiro e para sempre. Ou melhor, o único amor possível para uma mulher que escreve é o amor que ela sente por este expediente que nos leva em intervalos curtos do céu ao inferno ao longo de uma vida.
Doris Lessing, Virginia Woolf, Sylvia Plath, Clarice Lispector e tantas outras amaram mais as palavras que os próprios filhos ou outras pessoas, elas amavam os personagens, e foram, eventualmente, trucidadas por tamanha ousadia. Elas amavam o pensamento, a criação e o ofício, o duro ofício de criar vidas de outra maneira e fazer estas vidas reverberarem pelos tempos.
Hoje tomei o ônibus para ir trabalhar e me ofereci para carregar uma bolsa de livros pesada de uma moça que estava em pé ao meu lado. Ela aceitou a gentileza. Imediatamente imaginei que havia uma criança dentro da bolsa e que a moça descia rápida do ônibus me deixando com o bebê. Assim são os escritores: dementes, imaginativos, doidos.
Uma vez, no aeroporto do Rio, caí num pranto daqueles de soluço e ranho enquanto um rapaz muito gentil se aproximou com um lenço e perguntou, querendo ajudar, o que havia acontecido para que eu chorasse daquela maneira. Eu disse a ele que era melhor que não soubesse, pois ele iria ficar muito assustado. Eu tinha acabado de entender o final do romance que estou escrevendo, uma cena de desencontro de dois amantes num aeroporto e chorei como uma bezerra desmamada sob o olhar atônito do rapaz. Não tinha como explicar a ele que, por muito menos, pessoas são internadas como descompensadas e disfuncionais.
Escritores podem passar dias imaginando como vão matar alguém, planejando vinganças sórdidas, assaltos, tramoias, traições. Mentem quase sempre sem o menor pudor. E podem passar dias e noites mergulhados em dicionários analógicos, de sinônimos e antônimos num sofrimento sem fim em busca daquela única palavra capaz de dizer o que eles precisam. Não são pessoas normais. São intensas e sem graça, não sabem lidar com as coisas práticas da vida. Oscilam entre a histeria e a fobia, e são afeitos aos subterrâneos onde poucos se atrevem a ir, como arqueólogos perdidos que quase sempre não sabem o que procuram e menos ainda o que vão encontrar.
Precisam viajar e conhecer cidades, paisagens, cenários, pessoas e, principalmente, ouvir o ouro em pó que elas nos brindam quase sempre sem querer.
No belo filme do Fred Zinnemann, “Julia”, de 1977, que conta a vida da Lillian Hellman, baseado no primoroso texto “Pentimento”, Jane Fonda, que interpreta a Hellman, bêbada e envolta em peles num teatro de Moscou, liga para Dashiell Hammett contando sobre sua felicidade por estar com um belo casaco de peles e sendo ovacionada como dramaturga. Ele lhe diz que nunca esqueça que nada disto tem nada a ver com escrever. Ele sabia de coisas simples que são frequentemente esquecidas. Escritores não combinam com celebridades. Escritores vivem de outra matéria: de uma matéria suja, feia, escondida. Eles precisam de solidão, disciplina, isolamento e silêncio, um silêncio que nos faz obrar por dentro, escavar no obscuro e no desconhecido.
Assim, minhas queridas amigas que querem escrever, desistam da vida sonhada se quiserem amar as palavras como elas precisam, entreguem-se a uma vida que o ofício é quem cria, e não o contrário. E escrevam pelo único motivo nobre que nos move para este destino estranho, porque não sabemos fazer outra coisa, ou pelo simples fato de que não queremos fazer outra coisa, e porque foi ele que nos escolheu. É simples e bem complicado de fazer acontecer. Desista do êxito, do dinheiro, dos editores generosos e compreensivos, do sucesso e da vida fácil. Escrever é para os doidos, os abençoados doidos, que tocam, com suavidade e violência, numa pulsão que não se encontra em nenhum outro lugar.
Boa sorte e uma infinita paciência para todas nós.