O viajante quinhentista que se aproximasse dos jardins de Goa ou Cochim era atraído pelo suave aroma das suas flores. Em muitos destes quintais o viandante era surpreendido pela presença de uma árvore que revelava um comportamento peculiar: depois do entardecer a planta enchia-se de flores que, durante o dia, deixava cair por terra. Para além de aplicadas na culinária e na medicina tradicional, estas flores de incomparável fragância, eram usadas pelas gentes da região para perfumar as suas casas ou para agraciar os deuses.

Data de 1563, o primeiro registo impresso que, na Europa, deu conta deste prodígio. Este encontra-se no volume que o médico português Garcia de Orta (c.1500-1568) publicou em Goa: Colóquios dos Simples [1]. Nesta obra, onde o autor descreveu as hipotéticas conversas ocorridas entre um médico português residente ao longo de quase três décadas no Oriente e o seu colega espanhol recém-chegado a Goa, surgiu um capítulo dedicado a esta maravilha da natureza que o médico designou como árvore-triste [2].

Surpreendido com o comportamento da planta, afirmou o viajante castelhano: “Certo que é muito de maravilhar de dar as flores de noite e não de dia.”

Ao que o seu interlocutor respondeu:

“… dizem que esta arvore foi filha de um homem, grande senhor, chamado Parizataco; e que esta se enamorou do sol, o qual a deixou, depois de ter com ela conversação, por amores de outra; e ela se matou, e foi queimada (como nesta terra se costuma) e da cinza se gerou esta árvore, as flores da qual aborrecem ao sol, que em sua presença não aparecem. E parece ser que Ovídio seria destas partes, pois compunha as fábulas assim deste modo.” (Orta, 1987, I, p.71)[3]

A incapacidade de explicar o fenómeno que regia o estranho comportamento da árvore levou o médico a propor uma justificação baseada nas lendas locais. Apesar de pouco convicto sobre a veracidade de tal explicação o facto é que, para Garcia de Orta, como para os sábios do século XVI, a natureza continuava a guardar segredos que a razão não conseguia alcançar. Incapaz de encontrar uma explicação plausível para decifrar aquela maravilha, o médico português, com alguma ironia, socorreu-se da explanação assumida pela tradição local. Para Orta, como para os homens do Renascimento que olhavam com renovada atenção os textos da Antiguidade Clássica, o encontro com estes encantos da natureza contribuiu para tornar ainda mais aceitáveis os relatos de algumas das fábulas narradas por Plínio (séc. I) ou das metamorfoses descritas por Ovídio (séc. I).

Assim se compreende que outros médicos e botânicos, igualmente fascinados com o estranho fenómeno, tenham acolhido a explicação de Orta. Clusius (1526-1609), um dos mais destacados botânicos do seu tempo, publicou uma versão latina da obra de Garcia de Orta[4]. Relativamente à árvore-triste, escreveu:

“A árvore é do tamanho da oliveira, com folhas parecidas às da ameixeira, com uma flor muito cheirosa durante a noite (enquanto floresce), da qual, que eu saiba, não fazem nenhum uso por ser tenra: a não ser os pedúnculos das flores, que são amarelo-alaranjados, dos quais usam os habitantes desta cidade para tingir os alimentos, pois que o fazem como o açafrão. Querem alguns que a água destilada das flores seja útil aos olhos pondo um pano de linho molhado nela.”

E continuou:

“O nome de árvore-triste foi-lhe dado porque só floresce de noite. Os indígenas fabulam que um certo sátrapa, de nome Parizataco, tinha uma filha elegante, a qual, tendo-se perdido de amores pelo Sol, por ele foi violada. Como ele a deixasse depois, seduzido pelo amor de outra, a filha de Parizataco, horrorizada com o seu amor, resolveu matar-se. Das cinzas do corpo cremado (nesta região os cadáveres são queimados) nasceu esta árvore, cujas flores detestam o sol de tal modo que não conseguem vê-lo.” (Clusius, 1964, pp.209-210)[5].

A justificação que Garcia de Orta recolheu na tradição oriental chegou assim a toda a Europa através deste epítome latino e das sucessivas versões e traduções publicadas ao longo da centúria de Quinhentos. No entanto, apesar de despertar a curiosidade de muitos, até finais da década de 1570, não circulou no Ocidente qualquer desenho ou esboço da planta. A primeira imagem foi divulgada através da obra de Cristóvão da Costa, um português que viajou para Oriente, como médico do Vice-Rei D. Luís de Ataíde (g.1568-1571). No Tractado de las Drogas que publicou em Burgos, em 1578, Costa apresentou a primeira imagem impressa da árvore que teve oportunidade de admirar nos jardins de Cochim [6]. Esta preciosa imagem tornou-se ainda mais valiosa, perante a notícia da delicadeza da planta que sucumbia a qualquer tentativa de transporte para Ocidente. Como escreveu Costa:

“Muitos vice-reis da Índia, e capitães, e outras pessoas particulares pretenderam trazer esta planta a Portugal, e não saíram com ela. E a semente sei eu de alguns, que a trouxeram colhida na sazão, e em vasos de vidro bem fechados, e forrados: e em vasos de prata, e em outros de madeira, e de outras maneiras para a semear: e assim fizeram com toda a curiosidade, mas não nasceu em Portugal.” (Costa, 1964, p.135)[7]

Desconhecida da maioria dos europeus até à publicação de Colóquios dos Simples, as descrições daquela maravilha nascida a Oriente rapidamente inundaram as bibliotecas, salas e gabinetes dos eruditos e curiosos europeus. Até finais do século XVI, os textos e imagens que se referiram a este prodígio foram replicados, copiados, adaptados e usados em numerosos tratados médico-botânicos. A pouco-e-pouco, os saberes e as tradições de outras latitudes foram sendo integradas nos tratados de História Natural europeus. Os contactos com as novidades das Índias e com outras formas de entender a natureza contribuíram, afinal, para enriquecer e diversificar uma nova narrativa “científica” que então começava a construir-se na Europa.

Notas

[1] Garcia de Orta, Colóquios dos Simples, e Drogas he cousas Mediçinais da Índia, Goa, J. de Endem, 1563
[2] Nyctanthes arbor-tristis L.
[3] Para uma edição recente da obra goesa, vide: Garcia de Orta, Colóquios dos Simples e Drogas e coisas medicinais da Índia, ed. e notas do Conde de Ficalho, Lisboa, INCM, 1987 [1891-1895], 2 volumes. O trecho transcrito foi modernizado.
[4] Clusius, Aromatum et Simplicium, Antuérpia, C. Plantin, 1567.
[5] Para uma versão moderna da obra, ver: Clusius, Aromatum et Simplicium, versão portuguesa com edição e notas de Jaime Walter, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1964 [1567].
[6] Cristóbal de Acosta, Tractado de las Drogas, Burgos, M. de Victoria, 1578.
[7] Para uma versão moderna da obra, ver: Cristóvão da Costa, Tractado de las Drogas, versão portuguesa com edição e notas de Jaime Walter, Lisboa, Junta de Investigações do Ultramar, 1964 [1578].