Uma casa é um palco privilegiado para a construção de identidades, um espaço fisicamente habitado, mas também um espaço povoado por memórias – constituindo-se deste modo como um lugar de negociação entre o presente e o passado, a realidade e a imaginação.
Apesar dos seus contornos fixos, uma casa faz-se e desfaz-se repetidamente. É, na verdade, uma estrutura provisória, frágil, e determinada não apenas por matérias mas pelas relações que nela, e com ela, se estabelecem.
A palavra alemã “Heimat” remete para a casa, justamente enquanto espaço físico e habitado, mas também para o sentimento de pertença a um lugar – a um país, a uma cidade, ou a uma comunidade. Assim, “Heimat” implica espaços diferenciados, mas articula ainda uma noção de formação, ou de processo, que convoca temporalidades heterogéneas.
É a partir das próprias possibilidades de significação que “Heimat” incorpora que se materializa a exposição de Daniela Krtsch.
Com efeito, a partir de uma constelação de pinturas – que nos devolvem imagens rarefeitas, incompletas, parcelares –, desdobram-se inúmeras possibilidades de narrativas – igualmente inacabadas, inconclusivas, e sempre mediadas pela própria subjectividade do espectador.
O movimento de circulação do olhar sobres estas pinturas, que se apresentam como revisitações, fragmentos, ou detalhes, configura-se, nesta medida, como um instrumento de sutura, cuja tentativa de recompor um núcleo estavél de sentido está, invariavelmente, destinado a falhar. Tal como a memória, esse acto, que é tanto de recuperação como de produção, revela-se sempre insuficiente, em falta, perante um tempo passado.
Esta indefinição inscreve-se nas próprias superfícies da pintura, que assumem diferentes escalas, e cuja textura se define entre a nitidez e a opacidade, revelando linhas que tanto evidenciam presenças como marcam ausências, desaparecimentos, tempos deixados em suspensão.
Nestas fissuras que a imaginação abre na sua relação com o quotidiano, surgem figuras que se desviam para uma dimensão outra, tendencialmente onírica e até surreal, acusando desta forma um estranhamento da realidade que cria uma tensão entre o familiar e o desconhecido.
É pois enquanto parte deste processo de estranhamento que podemos distinguir uma criatura que emerge, com um corpo claro, flutuante, e com orelhas de gato, que evoca um imaginário infantil, ainda activo, capaz de contaminar a experiência do presente. Não por acaso, é precisamente a infância que, enquanto tempo formativo, matricial, assinala o início do que virá a constituir-se como “Heimat”.
Com base na sua própria experiência de deslocação, são assim as narrativas que constroem os nossos horizontes de pertença, e que diluem as linhas de demarcação entre realidade e ficção, que Daniela Krtsch pretende questionar nesta exposição.
Giulia Lamoni & Margarida Brito Alves 11.2014