No início da década de 1980 surgira uma livraria em São Miguel do Oeste/SC, quase na divisa com a Argentina, abarrotada de bons livros. E como os livros eram bons, ficaram encalhados por anos e anos. Em 2007, eu e o poeta Manoel Ricardo de Lima fomos à cidade dar um curso de literatura e encontrámos este paraíso perdido: primeiras e raras edições de poesia brasileira, livros raros da Francisco Alves, a primeira grande editora do país, e vários materiais de pequenas editoras extintas. Saímos falidos, carregando fardos e fardos de livros, e só dezenas de cervejas pós-curso aplacaram nossa euforia. Estive em São Miguel outras duas vezes, em 2008 e 2009, e sempre aumentava minhas dívidas, comprando como um louco (o que realmente sou). Estive na cidade no mês passado, e novamente passei na livraria. Restam poucos exemplares, e seu espaço físico diminuiu em pelo menos setenta por cento. Engraçado que surgiram vários edifícios em construção: é assim, as livrarias diminuem e os prédios crescem. Mas o acaso, este livreiro sensível, fez com que no meu reencontro com a livraria, eu saísse com as primeiras edições brasileiras de Golding, Visível escuridão e Bradbury, O país do futuro, o que me deixou com uma muralha branca por horas no rosto. É assim, ou mais ou menos assim: são os livros que nos encontram. Lembro que herdei de minha tia, que por sinal herdara de meu avô, a coleção completa, em capa de couro, do escritor francês Guy de Maupassant. Opa, completa não, pois faltava um exemplar: Pai Millon. Eis que muitos anos depois, qual não foi a minha surpresa ao encontrar o exemplar perdido num sebo em Rio do Sul, e assim completar a coleção?
Uma grande surpresa, digna das páginas de Paul Auster, escritor que adora trabalhar com os acasos em seus livros. Lembro de quando fui morar em Jaraguá do Sul, e não tinha grana para comprar todos os livros que gostaria, e ficava babando na Grafipel, na Livraria do Pedrinho e no Sebus, sonhando quando poderia ter os livros que quisesse. Até comecei a escrever um conto, em que um escritor pobretão começa a indicar livros em jornais (livros que ele ainda não leu), para que as pessoas comprassem, e por fim estes mesmos livros depois parassem nos sebos (e ele pudesse comprar). Um conto bem divertido, quem sabe ainda o termine. Hoje minhas condições financeiras são um pouco melhores, mas agora o que falta é tempo. Nunca temos tudo o queremos, não é?
Mas ao menos tenho os livros que quero, e posso propagar por onde passo a fé no livro e na leitura. A literatura não tem bandeiras, ela não representa um país ou um território, mas sim a imaginação. É uma rotatória infinita, que não te leva para um lugar, mas sim para dentro de você mesmo. É um cinema interior, pois quando você lê você cria os cenários, os atores, de acordo com o andar da leitura, você é partícipe. Bom, me empolguei, é o mal, o Mal de Montano que me consome. O Mal de Montano é a obsessão pela literatura e pelo literário, pelo desejo de ser a “memória da literatura” encarnada e pela busca de um antídoto para a morte da literatura. O termo foi criado pelo romancista catalão Enrique Vila-Matas em seu romance-ensaio O mal de Montano, e pode ser resumido no seguinte parágrafo do livro: “Talvez a literatura seja isso: inventar outra vida que bem poderia ser a nossa, inventar um duplo. Ricardo Piglia diz que recordar com uma memória estranha é uma variante do duplo, mas é também uma metáfora perfeita da experiência literária”.
O Mal me afeta de tal forma, que escrevo de forma obsessiva sobre um único tema: a literatura e a sua capacidade de transfigurar esta coisa incerta a qual chamamos vida…Afinal, como diz Vila-Matas, “não há melhor forma de se livrar de uma obsessão do que escrever sobre ela”.
E são experiências literárias e extraliterárias como a de São Miguel, que me fazem crer que não existe fronteira entre a realidade e a ficção. Somos todos ficções.