Em pleno século XVI as naus portuguesas sulcavam os oceanos levando até às longínquas Índias Orientais marinheiros, soldados, missionários e aristocratas. No regresso, ao desembarcar em Lisboa, muitos destes homens traziam notícias surpreendentes sobre as gentes, os climas e a natureza avistada. Entre elas abundavam as descrições de plantas novas, animais extraordinários, frutas deliciosas e produtos milagrosos. A falta de preparação técnica de muitos destes informadores justificava a multiplicidade de questões que os seus testemunhos suscitaram entre sábios, médicos e boticários de então. A diversidade de informações contraditórias sobre a natureza das Índias tornava premente a publicação de um tratado sobre as drogas asiáticas que difundisse um saber revisto, testado e validado.
Colóquios dos Simples e Drogas e Cousas medicinais da Índia foi uma destas obras pioneiras. Publicada em Goa, em Abril de 1563, da autoria do médico português Garcia de Orta (c. 1500-1568), divulgou entre os leitores europeus a primeira descrição quinhentista dos recursos naturais da Ásia.
Redigido em português, em forma de diálogo, Colóquios dos Simples descreveu 59 conversas fictícias ocorridas entre dois médicos ibéricos. Um dos físicos, de origem espanhola, tinha apelido Ruano e o outro, natural de Castelo de Vide, em Portugal, chamava-se Orta. O primeiro acabara de chegar a Goa a bordo da nau de um seu cunhado, o segundo há muito que deixara Lisboa e se havia instalado na capital do Estado Português da Índia como médico de gentes simples e das elites políticas e religiosas.
Tendo como pano de fundo o pomar, a horta, o gabinete de trabalho, a biblioteca ou a varanda da casa goesa de Garcia de Orta, os produtos asiáticos foram sendo colocados sobre a mesa, de forma natural, ao ritmo da vivência quotidiana.
Os debates entre os dois homens trouxeram aos leitores uma nova descrição da natureza das Índias Orientais. As animadas discussões entre os sábios foram frequentemente interrompidas pelo vaivém de empregados, servas e moças e pela chegada de mercadores, feitores e visitantes que traziam exemplares e notícias sobre o uso das drogas, especiarias e pedras do Oriente.
Ao longo de Colóquios dos Simples, Garcia de Orta apresentou uma aturada revisão dos saberes em circulação no Ocidente sobre a história, propriedades, usos, origem e mercados de distribuição dos principais produtos asiáticos. Em cada colóquio, os médicos esgrimiram argumentos e debateram conhecimentos. Enquanto Ruano se resguardava em provas textuais, Orta, que as conhecia, bastas vezes as contestou. Para defrontar os textos, o médico português recorreu a uma astuciosa arguição. Para tal, valorizou a observação de plantas, pedras e sementes que guardava no seu escritório e revelou as notícias que alguns dos seus informadores e amigos lhe haviam confiado. Evocou também a sua ampla experiência clínica, de quase três décadas, por terras orientais. Atendeu igualmente ao saber dos físicos locais dos quais aprendeu as designações, aplicação e utilidade de numerosas drogas indianas.
Atestando uma invulgar autonomia intelectual, Garcia de Orta ousou questionar o saber médico-botânico em circulação na Europa. Advertindo o seu interlocutor com um audaz “Não me ponhais medo com Dioscórides nem Galeno”, Orta revelou uma renovada descrição das drogas, especiarias e frutas orientais. Entre muitos outros produtos asiáticos, validou um novo saber sobre canelas, pimentas, gengibre, cravo ou noz-moscada; descreveu deliciosas frutas como mangas, duriões, carambolas, jacas, jangomas, jambolões, mangustões, brindões ou líchias; testemunhou a sua confiança na eficácia terapêutica de drogas como a raíz-da-China ou os bezoares; apresentou plantas maravilhosas como a árvore-triste ou a erva-viva. Atendeu ainda às qualidades das pérolas e pedras preciosas, destacando o valor dos diamantes, esmeraldas, rubis, safiras, jacintos ou granadas.
Revelando um optimismo contagiante na sua capacidade de dominar a torrente de novidades sobre a natureza das Índias Orientais que então se desvelava, Orta não se coibiu de afirmar “O que hoje não sabemos, amanhã saberemos”.
Saída dos prelos goeses em 1563, a obra desembarcou em Lisboa no ano seguinte. Para a rápida divulgação europeia do saber contido neste tratado, muito contribuiu a versão latina de Clusius (1526-1609), um dos mais destacados botânicos do seu tempo que colocou em circulação Aromatum, et simplicium aliquot medicamentorum apud Indus nascentium historia (Antuérpia, 1567). As sucessivas edições revistas e aumentadas editadas até 1605, assim como as versões francesas e italianas que delas surgiram, divulgaram por toda a Europa as notícias recolhidas e autorizadas por Orta. Também em Espanha surgiram obras originais baseadas no tratado publicado em Goa que contribuíram para sedimentar e divulgar o saber validado pelos Colóquios. Referimos-nos a Discurso de las plantas aromáticas arboles y frutales y de muchas otras medicinas simples que se traen de la India Oriental (Madrid, 1572) da autoría de João Fragoso e Tractado de las Drogas, y medicinas de las Indias Orientales (Burgos, 1578) de Cristóvão da Costa. Estes dois médicos portugueses ao serviço dos interesses de Filipe II (1556-1598) trouxeram ao espaço imperial filipino um renovado conhecimento da natureza das Índias.
Em pouco mais de meio século, o saber recolhido, testado, validado e autorizado por Orta foi disseminado por toda a Europa e pelos vastos impérios peninsulares. Mas a relevância da sua obra não se limitou à divulgação da novidade. Garcia de Orta inovou também pela ousadia de, no seu tempo, enfrentar a tradição textual propondo uma nova forma de integrar o saber de outros e de observar o mundo natural.
Num momento em que acaba de passar mais um ano sobre a data da edição prínceps de Colóquios dos Simples vale a pena recordar a obra e a genialidade deste verdadeiro precursor da ciência moderna.