Segundo Glenda Bastos Manoel (2017), o futebol é a modalidade esportiva mais popular do Brasil. Pensando o jogo das quatro linhas como fenômeno cultural brasileiro, este tornou-se a partir do século XX objeto de interesse das mais diversas interpretações teóricas, artísticas, cinematográficas, etc. É nesse contexto que é possível associar o esporte e a AD, refletindo sobre significação do futebol dentro da arte, música e literatura por meio de estruturação de um discurso. Desta maneira, a arte transmite carrega uma série de valores, símbolos, que podem ser enquadradas como Ideologia. Segundo Althusser (1973), “a ideologia representa a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência’’. Logo, a música do gênero funk, escolhida para esta análise, aponta a relação do cantor escolhido com o mundo.

De quatro em quatro anos, no contexto das Copas do Mundo, diversos músicos, cineastas, pintores e poetas abordam sobre as emoções do esporte, projetando uma narrativa vinculada à identidade do povo brasileiro apaixonado pelo futebol, que para Nelson Rodrigues, caracteriza a “Pátria de chuteiras”.

Um dos compositores que discute sobre a Copa do Mundo é Erick Warley de Oliveira Rodrigues, mais conhecido como MC Rick. Nascido em Belo Horizonte, o cantor possui cerca de 639 mil inscritos e mais de 62 milhões de visualizações em seu canal no Youtube. Sendo considerado um dos expoentes do funk mineiro, conhecido entre adolescentes e jovens, é dono de sucessos como Nada vai mudar (2019), Me Jogou no Lixo (2019), Chutei o Balde (2022) e Ela Não Presta Rick (2023). Embalado pelo contexto da Copa do Qatar de 2022, em parceria com a gravadora GR6 Explode, MC Rick lançou a música Seleção do Tite (2022), que teve seu videoclipe gravado na comunidade Morro do Papagaio em Belo Horizonte.

Partindo sob o olhar de Althusser (1973), a narrativa da obra transmite o olhar imaginário do jovem periférico sobre a realidade, que neste caso é representado pelo o mundial da Fifa, a seleção Brasileira e as implicações do torcer. Na composição, é possível identificar o uso de metáforas que associam a vida, a sexualidade e identidade da juventude periférica à participação da Seleção na Copa.

Sob a óptica de Charaudeau (1999), que aponta para a elucidação do discurso, a construção da música representa um jogo de palavras que retrata uma estrutura social, política, econômica e cultural profunda que pode apontar um conflito entre o individual e o coletivo, nesse caso ligado à relação à Copa do mundo: Vemos que não se trata mais de retornar a um lugar original de explicação, mas sim de um jogo de deslocamentos de um lado para outro, gerador de uma intertextualidade aberta, lugar de conflito entre um sujeito coletivo e um sujeito individual (Charaudeau, 1999, p.18).

Nossa reflexão sobre a canção parte da análise do discurso, que perpassa pela construção do Ethos, que para MAINGUENEAU (2006), divide-se em ethos dito e o ethos mostrado. Outra dimensão da análise discursiva da música é a maneira na qual a enunciação constrói a significação dos eventos, símbolos e situações descritas pelo cantor, o que para Charaudeau (1999), representa:

O ato de linguagem não pode ser concebido de outra forma a não ser como um conjunto de atos significadores que falam o mundo através das condições e da própria instância de sua transmissão.

(Charaudeau, 1999, p.20)

Análise da música

Segue a letra da música Seleção do Tite (2022), retirada do site Ouvir Músicas:

Oi, vai segurando, ta? Vocês pediu, então toma Brasil

Peita do Brasil que sou brasileiro e não sou Bolsonaro Copa do Qatar ta aí, nós vai assistir mastigando churrasco Seleção do Tite, faltou só convocar o MC Rick
Que só joga sem chuteira e mete bola com apetite Seleção do Tite, faltou só convocar o MC Rick Que só joga sem chuteira e mete bola com apetite
Na quebrada, elas me chamam de jogador do momento Só porque eu joguei com ódio, mostrei meu talento

Brecou, tomou de quatro em casa, agora vai nascer um Enzo Em quatro linha, eu represento, eu represento
Invado seu meio de campo e de trivela, eu taco dentro Em quatro linha, eu represento, eu represento
Invado seu meio de campo e de trivela, eu taco dentro

Baila, Vini Junior, faz um gol e vem pro abraço
Mete dança com o Rodrygo, passinho dos menor enjoado Baila, Vini Junior, faz um gol e vem pro abraço
Mete dança com o Rodrygo, passinho dos menor enjoado

O enredo da música inicia-se com uma saudação do cantor, que se materializa com a metonímia, do termo segurar, que representa uma forma de anunciação da figura e da música do funkeiro. Partindo da referência teórica de Charaudeau (1999), essa saudação também é presente em outras canções, como Nada Mudou (2018) e Nada vai mudar (2019) serve para marcar a identidade do cantor no cenário do funk. No videoclipe da música, o cantor é encontrado com uma camisa amarela da seleção brasileira e ao fundo, diversos dançarinos, também estão vestidos camisas azuis, pretas e brancas da equipe canarinho. Ela também demonstra a maneira na qual o autor se vê no cenário musical. De acordo com Althusser (1973), aponta como o cantor se vê na realidade e como se apresenta para o público.

Após a saudação, o segundo verso possui a proposta de desvincular a camisa do Brasil e a política. O cantor usa uma metáfora de ser um brasileiro que possui direito de usar a camisa amarela, assim como qualquer outro indivíduo em território nacional, mas que não é vinculado à direita. Neste momento, Rick aponta seu posicionamento político e busca dar um novo sentido para o uso da camisa da seleção, símbolo utilizado desde 2013, em um processo descrito por Gastaldo (2015) que influenciou a Copa no Brasil em 2014 e culminou de ascensão de grupos de direita e a eleição de Jair Messias Bolsonaro em 2018.

Desta maneira, é possível a partir de Charaudeau (1999) observar como o cantor aponta para uma nova intertextualidade sobre a camisa da Seleção Brasileira. Assim, MC Rick marca uma posição individual, de usuário comum da camisa, em relação ao coletivo, ligado à apropriação do símbolo por parte da extrema-direita. Também é possível associar a crítica do cantor à ótica de Matta (2006), que discute que nosso país possui símbolos nacionais, dentre eles a Seleção brasileira e sua camisa amarela, que foi apropriada e ressiginificada por grupos de direita como símbolo de patriotismo desde 2013.

Ainda na primeira estrofe, remontando o contexto do mundial da Fifa, Rick descreve uma das formas de torcer em jogos de futebol que, pensando sob a ótica de Althusser (1973), constroem uma ideologia, ou melhor, um imaginário que faz parte da sociedade brasileira, por meio de confraternizações regadas a bebidas e comida. A associação feita na música é no caso, do churrasco, que Maciel (1996) ressalta que possui conotação de festividade e socialização. Depois há uma exaltação ao treinador Adenor Leonardo Bachi, conhecido como Tite e uma metaforização da figura do jogador em relação ao cantor.

Pensando sob a lente teórica de Charaudeau (1999), MC Rick utiliza uma série de jogos de palavras para se projetar como um atleta diferente, que não está dentro das quatro linhas do campo, mas fora. De maneira explícita e sexualizada, o cantor constrói um ethos, que se dá no discurso, de que é ativo sexualmente e pode ser considerado “bom de cama”. De acordo com Althusser (1973) essa visão representa valores do comportamento - nesse caso a ideologia - claro que sem generalizar, presente na identidade do jovem periférico, ligada ao sexo desde cedo. Sob a ótica de Maingueneau (2006), o ethos dito nessa estrofe é o da pessoa “antenada” ao linguajar do futebol e da sensualidade, mas o ethos mostrado é do jovem que se envereda e possui contato ativo com práticas sexuais.

Na próxima estrofe também existe a metaforização da vida cotidiana e com o universo futebolístico. Resgatando sinônimos para a periferia, Rick discute que sua fama está em alta. Nesse caso, de acordo com Althusser (1973), o cantor mais uma vez constrói um imaginário de si sobre a condição real de existência.

Ele descreve que mulheres o associam a um bom jogador, pois seu desempenho sexual seria extremamente positivo. Podemos visualizar essa visão que ele tem das mulheres do ponto de vista de Pirre Bourdieu, que discute que no capitalismo nossa identidade é mercantilizada e construída, muitas vezes, a partir de estereótipos, a mulher aparece, dessa maneira, como um indivíduo “condenado a ser visto através de categorias dominantes, isto é, masculinas” (Bourdieu, 2003, p. 85). Neste contexto, o homem é visto como dominador e a mulher como admiradora e refém do sexo. Essa construção de estereótipos coletivos e individuais, sob a ótica de Charaudeau (1999), se constrói a partir de um jogo de palavras e atos significadores.

Em seguida, resgatando gírias e a linguagem futebolística, Rick aponta que o ato sexual teria sido proibido e resultaria no nascimento de uma criança. Metaforicamente o funkeiro ainda associa sua performance sexual ao jogo de futebol. A partir do uso de uma metonímia, ele discute que dentro das quatro linhas, que neste caso não são as do campo, fazendo referência às quatro paredes, ele se garante. Ainda utilizando uma metonímia, o chute de trivela leva-o ao gol, que no caso é o gozo, o prazer ou o próprio ato sexual.

Perpassando pelo ethos dito e mostrado de Maingueneau (2006), o cantor aponta um ethos mostrado de um jovem ativo sexualmente, mas que é construído pelo ethos dito da linguagem técnica do futebol por presente na identidade do jovem periférico. Ou seja, essa relação entre a sexualidade e futebol faz parte da Ideologia, que segundo Althusser (1973), constrói o imaginário do jovem da periferia.

Na última estrofe, há um resgate significativo da equipe brasileira por meio da associação com a dança, pelo termo Baila. Rick remonta a narrativa do futebol-arte presente, segundo ele, no futebol de Vinícius Junior e Rodrygo Silva de Goes, ex-atleta do Flamengo (RJ) e Santos (SP) e hoje jogadores do Real Madrid da Espanha. É possível perceber que o cantor, independentemente se pensado de forma proposital ou não, resgata e carrega em suas palavras a presença de traços do mito do futebol-arte proposto por Gyberto Freyre descritos no artigo Football Mulato, publicado em 1938.

Sob a ótica de Althusser (1973), O funkeiro projeta na figura dos dois jogadores, Vinícius Junior e Rodrygo, o futebol dionisíaco freyriano que “atribui características dionisíacas ao estilo de jogo brasileiro que estariam relacionados aos elementos de um povo miscigenado. Criatividade, espontaneidade, malemolência, seriam atributos do futebol brasileiros oriundos da mistura das raças que formariam a nação. Dessa forma, os dois jogadores representam o imaginário que carrega um futebol alegre, solto, criativo, leve, dançante, bonito, e astuto que estaria no DNA dos jogadores brasileiros e também se manifesta nos passinhos na comemoração dos gols da seleção brasileira.

Desta maneira, é possível compreender a quantidade de elementos que compõem a narrativa da música, sustentadas por meio de metáforas e metonímias, com objeto de construir o Ethos da identidade periférica na sua visão sobre a seleção na Copa do Mundo, ligado ao sensualidade, socialização e futebol.

Referências bibliográficas

Alberto, C. F. Além da carne assada sobre as brasas: os elementos de consumo de churrasco. Dissertação de mestrado – UFRGS, 2010.
Althusser, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1973, p. 41-52.
Damatta, Roberto. A ordem mundial da Copa (2002). In: Damatta, Roberto. A bola corre mais que os homens. Rio de Janeiro: Rocco, 2006, p. 115-117.
França, Wanderson. MC Rick vive boa fase e levanta a cena musical de MG. Kondzilla, 2019
Freyre, Gilberto. Football mulato. Ludopedio.
Gastaldo, Édison. A Copa de 2014, entre o fascínio das ruas e o fascismo dos craques. In: Marques, José Carlos (org). A Copa das Copas? Reflexões sobre o Mundial de Futebol de 2014 no Brasil. São Paulo: Edições Ludens, 2015, p. 267-272.
Maingueneau, D. Novas tendências em análise do discurso. Campinas: Unicamp & Pontes, 2006.
Manoel, Glenda Bastos. A evolução histórica do futebol no Brasil: o início de sua construção como identidade nacional; Universidade do Futebol, 2017.
MC Rick. Seleção do Tite – Mega da Copa (2022). (canção não integrada a álbum).