Quase mapa, quase mancha.

A obra de Anna Bella Geiger é vastidão. Um corpo de trabalho permeado por processos e experiências pioneiras no campo da arte, que norteiam caminhos, construindo e consolidando uma potente poética artística ao longo de 75 anos de trajetória.

Quase mapa, quase mancha se detém a um recorte temporal ousado e pouco difundido dentro da sua produção, desenvolvida nos anos 1980, que compreende trabalhos nos suportes da pintura, gravura e videoinstalação, esta última apresentada originalmente na XVI Bienal Internacional de São Paulo, em 1981. Historicamente, essa década é marcada, na arte, por um retorno à pintura que marcou uma geração e se sustentou no ideário da construção de um novo conceito de nação após os extensos anos de ditadura civil-militar no país.

A sua obra, nesse período, situa-se pontualmente em uma intrigante flutuação entre a ideia da forma e de um outro significado da representação. O que se percebe pela presença de elementos em suas composições, muitas vezes incompreensíveis, que jogam com a relação da figuração em sua forma mais tênue, beirando à sua ausência, uma espécie de “não lugar meio mapa, meio camuflagem”1. A videoinstalação que abre a mostra já nos coloca tais questões: intitulada Mesa, friso e vídeo macios(1981), é uma variante da realizada anteriormente pela artista, O pão nosso de cada dia (1980), na XXXIX Bienal de Veneza. Concebida com elementos similares, fora desenvolvida para a chamada “Bienal da Abertura”, como ficou conhecida a XVI Bienal Internacional de São Paulo, após os anos de chumbo e o boicote realizado pelos artistas — dentre eles, Geiger —, desde o ano de 1969, em protesto ao Ato Institucional nº 5 (AI-5), que acentuou a censura no Brasil.

Nos trabalhos instalativos a artista inaugura a ideia do uso do estofado em sua produção, onde se vislumbra uma espécie de território indecifrável, por meio das manchas e camuflagens utilizadas na composição da sua superfície. Nos localizamos em um espaço monotemático, em que frisos, mesa e vídeos são representados por um mesmo padrão de formas serigrafadas e pintadas sobre o tecido. Vemos também silhuetas de nuvens que a artista transformou em clichês para a impressão serigráfica, já utilizadas em séries de gravuras e desenhos ainda dos anos 1970, que refletiam sobre um outro tipo de território que se poderia ocupar, ou sonhar em ocupar livremente, naquele período histórico, uma vez que o brasileiro estava sob forte repressão política.

A obra de Anna Bella Geiger tem uma historicidade própria, fala a si mesma e se retroalimenta na experimentação de suportes, elementos, materiais e até mesmo de questionamentos. Geiger viveu a arte moderna e a sua passagem à contemporânea no Brasil, tendo se interessado por arte desde muito jovem, com seus 16 anos, e iniciado uma formação abstrata em gravura e desenho, no ateliê de Fayga Ostrower, no Rio de Janeiro. Lá, conviveu com Lygia Pape e Décio Vieira, que também se tornaram artistas abstratos nos anos 1950. A artista carrega uma obra completa que não perde a sua essência ou inventividade, mas reforça o seu caráter experimental com o passar do tempo, e, a vertente instalativa da sua obra, nessa exposição, permeará as bases da sua produção no período, ao passo que inaugurará o espaço da tridimensionalidade de forma única e pontual.

Mesa, friso e vídeo macios (1981) cria a ambiência de um “gabinete secreto”, semelhante aos filmes noir de Hollywood, com sua luz baixa, frisos que remetem a elementos arquitetônicos de outra época, num território sinuoso que pode se observar ao vislumbrar essa mesa de cima, como se fosse preciso criar uma estratégia, com o suspense pairando no ar. Já os vídeos nada mais são do que registros dessas próprias camuflagens que dão corpo aos demais elementos, filmados de perto e de forma sinuosa, de um lado ao outro, chacoalhando a câmera, dando pequenas pausas, indo e voltando em movimentos ritmados, com sons perturbadores e ininteligíveis que nos remetem a um campo de guerra, como visto de cima por um avião ou satélite. A sala nos coloca, ou melhor, nos provoca a um estado de suspensão, em que toda a cena produzida pelas padronagens ainda orbita na sugestão de se apresentarem como quase um mapa, ou quase uma mancha.

O mesmo virá a se reiterar nos demais trabalhos da exposição, como Nuvens I e Nuvens II, ainda de 1978, momento em que estava começando a desenvolver o que viria a ser a sua icônica série Macios — conjunto de trabalhos estofados feitos de lona, montados em chassis de formatos diferenciados, que fazem perder a noção de vertical e horizontal das telas tradicionais —, caracterizando as suas primeiras experiências desenvolvidas numa mescla da impressão serigráfica e do uso da pintura de forma concomitante sobre a tela. A necessidade da pintura “especulativa, intranquila, que tem reflexos de experimentação”2 como meio de produção é marcante entre os artistas brasileiros ao longo da década de 1980, e, com Geiger, não foi diferente, desde então, a artista passa a desenvolver uma gama de pinturas em acrílico e óleo sobre tela e macios.

Há que se notar nas pinturas, macios e gravuras, uma relação de composição estética e cromática que se faz pela fragmentação para se chegar ao todo, pelo uso da mancha, da camuflagem, da sobreposição de camadas, cores, texturas e volumes, tanto por meio das pinceladas nas telas, quanto da impressão gráfica nas gravuras, que vêm instaurar uma outra percepção de abstração dentro da sua obra. Uma produção que se dá aos “bocados”, pois se observarmos algumas das pinturas como Pier and ocean III (1985) e Dilúvio (1987), faz-se nítido que a artista enfrentou a tela em branco a dividindo, criando seções dentro da sua própria superfície para desenvolvê-las ou até “resolvê-las” uma a uma, parte por parte, culminando no todo que nos é posto. Uma tentativa de colocar os fragmentos em ordem e se questionar como eles se unem na sua totalidade3, como diria a crítica de arte norte-americana Dore Ashton.

A diluição da ideia da figuração paira sobre esse recorte de obras proposto. Ao mesmo tempo em que não há uma abstração aos moldes tradicionais, tampouco há a representação geográfica a qual explorou incessantemente ao longo dos anos 1970 em sua obra. Os trabalhos aqui presentes não foram construídos sobre os princípios norteadores da sua profícua e pioneira atuação no chamado Abstracionismo Geométrico e Informal de vanguarda brasileira — que pôde desenvolver ainda muito jovem, no decorrer das décadas de 1950 e 1960. Logo, a sua composição parte de um outro pressuposto dado a equacionar tanto o seu lado formal quanto narrativo. É o próprio embate com a construção pictórica da obra em formas, massas de cor e proporções que são pensadas de forma analítica e seccionada, convidando o espectador a observar o trabalho como um todo.

(Texto de Ana Hortides)

A pintura, as pinturas.

A pintura daqueles anos ainda era de uma recusa absoluta dentro de algum pensamento conceitual. Porém, já começavam a surgir artistas no exterior pautados em algumas daquelas questões. Quando eu olhei a pintura de alguns deles, entendi que aquilo para eles, era como para mim. Era de uma outra natureza.

O termo “Retornar à pintura”, naqueles anos 1980 no Rio de Janeiro, não significava nada daquilo que eu estava tratando na minha obra. Também não se tratava do meu retorno à pintura, no sentido das telas abstratas a óleo dos anos 1950. Essa pintura não era abstrata nem figurativa. O que era?

A minha maneira de ordenar a tela, que apresentei em mostras na Galeria Saramenha e Galeria São Paulo, e em diversas Bienais, era diferente. Recentemente, ao participar de uma mostra em Madri, o curador Tiago de Abreu Pinto disse que, na Espanha, estavam lendo a obra como abstrata. Não é que eu pensasse em fazer outra pintura. Era mais no sentido de que ela apresentava elementos desconhecidos para mim mesma, que atribuo a um pensamento conceitual quanto à sua natureza e significado. Partia da ideia como ideia. Isso não me impedia de usar meios ou categorias como pintura, mas não havia aqui artistas que trabalhassem dessa maneira nos anos 1980, ou mesmo 1990.

Estranhamente, quando iniciei a série de pinturas denominada Pier and ocean eu estava inteiramente siderada com a pintura do Vermeer. Ele pertenceu ao barroco do norte holandês que não é religioso. Eu estava começando a entender as suas pinturas pela sua construção arquitetônica e não pelos elementos descritivos figurativos. Introjetei aqueles elementos de casas e ruas, suas entradas e interiores, eliminando a figura humana que aparece em sua obra. O que me interessou nas cenas de rua desse artista, e seus contemporâneos Jan Steen e De Hooch, foram as características estilísticas das estruturas, como uma composição. Tratava-se da tridimensionalidade das fachadas e dos seus corredores internos. Esse outro ângulo que eles utilizavam, que intercepta um ângulo reto, dirige o olhar do leitor para dentro do prédio. Há uma manipulação visual do real.

Também introduzi nas minhas composições o uso da luz – uma luz simbólica, típica do barroco holandês do século XVII. Há na obra de Vermeer variações abruptas entre luz e sombra, onde o uso ortogonal das molduras das janelas e das mesas perpendiculares, obstaculiza a entrada no espaço criado na tela. Apesar de achar que composição é uma palavra antiga, não é. Mas sim como você equilibra o todo e a questão essencial para qualquer artista desde a Renascença.

Eu entrei por ali e comecei a construir a tela em partes, o que já não é uma questão da abstração. No Abstracionismo é o espaço integral da tela que tem que ser ocupado, onde serão criadas situações de equilíbrio e desequilíbrio na sua área. Mas no meu caso, ao contrário, eu construí os alicerces das minhas telas, partindo da esquerda para a direita, a dividindo. Não trago a figuração do Vermeer, e sim a sua composição, a sua estrutura. E fiquei tão imersa naquilo, que essa série de pinturas Pier and ocean foi sendo criada a partir do título de Mondrian em sua obra. Ele deu esse título aos seus trabalhos, querendo dizer o seguinte: quando ele chama de Pier, ele está nomeando a construção da estrutura, que provavelmente é aquilo que procuro na tela do Vermeer – os Piers. E o Ocean é a própria matéria pintura.

Me apropriei desse título como compreensão da forma de construir, que nunca foi ligada ao Abstracionismo Geométrico, embora eu tenha estudado toda a iniciação do que ele se constitui. Porém, a obra enveredou pela questão do Informal ou Lírico. Pode-se ver isso já nas gravuras abstratas dos anos 1960, assim como nos quadros aqui expostos. Fiquei tão convicta dessa descoberta, que é assim... o artista fica possuído por uma ideia que é a fortuna dele. Então, como ele vai desenvolver essa ideia? Eu mesma não sabia. Mas era uma época em que eu pintava telas cada vez maiores. Algumas de dois metros, que expus em diversas mostras e Bienais.

Quem está diante de um trabalho de pintura como o meu, pode perceber várias camadas de significados. A obra conceitual instaura situações que não são de uma visualidade óbvia e tampouco não são imagens pelas imagens. Não se trata de nenhum segredo particular que eu queira revelar. Ele ocorre dentro de uma situação da própria composição, dos próprios elementos a que me refiro.

Pier and ocean de Mondrian só existiu porque existiu Vermeer.

Os meus Pier and ocean se encaminharam para essa mesma lógica.

(Texto de Anna Bella Geiger)

Notas

1 Chiarelli, Tadeu. Fax para Anna Bella Geiger. In: Anna Bella Geiger: territórios, passagens, situações. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. p. 165-166.
2 Navas, Adolfo Montejo. As aporias da pintura (ou uma pintura de pinturas). In: Anna Bella Geiger: territórios, passagens, situações. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2007. págs. 30-34.
3 Ashton, Dore. Anna Bella Geiger. Review: Latin American literature and arts, n.48, 1984.