Escrevi a imagem que era a cicatriz de outra imagem.

(Herberto Helder)

O trabalho de Juliana Cerqueira Leite parte, fundamentalmente, da escultura. E é o pensamento escultórico, em tensionamento e espessuras diversas, que se apresenta em Outras simetrias, exposição composta essencialmente de esculturas e desenhos que fazem com que a gestualidade transborde para fora dos circuitos e sentidos que lhes são habitualmente atribuídos, inserindo-a em lugares insuspeitos, articulando-a com outras formas de saber e fazer, colocando em cheque categorias que se encarregam de situar o corpo como algo estanque e fixo. Aqui, o corpo está em vertigem e abriga sua fantasmagoria, na contramão de uma assepsia que visa doutrinar sua presença. No ato de encorajar a instabilidade, promovendo recortes e justaposições que invocam outras presenças e arquiteturas a refundar espaços, a artista encontra o ponto fulcral de sua relação com a escultura. Os desenhos, por sua vez, servem como revelação de algo latente, que pode ir se colocando no próprio fazer gestual e na dimensão da aparição.

A partir de seu corpo a artista criou dois moldes com atadura gessada. Espelhos um do outro refletindo a mesma pose, os moldes, verticalmente cortados ao meio segundo o eixo sagital onde o próprio corpo se espelha, estão fundidos perpendicularmente. A artista se lança e relança em um trabalho que, para gerar corpos que criam outros espelhamentos, rompe lógicas preexistentes. Outra cena, subvertendo a dimensão da escultura clássica, se dá a ver em combinações que revelam as esculturas como poemas que geram assimetrias em torno do espaço. Da presença enigmática de corpos e da linguagem, surgem obras que lembram carcaças, casulos, figuras que, em constante mutação, vivem entre o humano e o animal, como imagens que se deslocam em sonhos, no céu ou na alucinação poética. São impressões abstratas, formas em dissolução um tanto nebulosas, injetando uma dimensão delirante, plural e nômade na representação.

A experiência de outra relação com o espelhamento, central para a artista, tem um caráter primordial na teoria psicanalítica. Na metáfora “estádio do espelho”, Jacques Lacan promove uma perpétua intercambialidade entre objeto e sujeito, problematizando nosso lugar no mundo. Se há, para ele, um momento decisivo em que a criança reconhece sua imagem no espelho, neste reconhecimento há também uma instabilidade que se coloca em jogo. Lacan trabalha aqui a ideia da constituição subjetiva como tributária, retomando a afirmação de Freud: “o eu não é mais senhor em sua própria casa”. É neste ponto que as coordenadas espaciais se rompem, acabam por se abrir e a nos incorporar. É o que Juliana revela em seus gestos de reconstrução, colagem e justaposição de elementos do corpo, dando a ver o vazio fundamental e a não-coincidência que nos é constitutiva, um espelhamento que não revela o mesmo, mas sempre um outro de si, o eu que é um outro.

Impossível não invocar aqui Eva Heese – escultora fundamental para a artista – que, em suas primeiras obras tridimensionais com características antropomórficas, feitas entre 1965 e 1966, incorporou o que o crítico Yve Alain-Bois chamou de “operação complexa”, unindo no trabalho gestos contraditórios que abrigavam a dúvida, próxima a fronteiras, esgarçando os limites já estabelecidos.

“Quiralidade” é uma propriedade geométrica que se refere à assimetria de uma molécula, que impossibilita sua sobreposição à imagem espelhada. Uma ideia fundamental para Outras Simetrias é essa não-complementariedade. A palavra “quiral” vem do grego e significa “mão” e, não por acaso, um exemplo de quiralidade é a diferença entre a mão direita e a esquerda, que não podem ser sobrepostas. Essa dimensão da assimetria é um aspecto constitutivo do corpo biológico e também do corpo pulsional que é constituído no embate e na instabilidade entre a biologia e a linguagem que perfura e dá sentido ao corpo.

Nos deslocamentos propostos nas obras – e na presença do próprio corpo da artista – encontramos um fino diálogo com questões propostas por Donna Haraway, filósofa e zoóloga pesquisadora das novas faces das tecnologias do corpo que provocam profundos impactos como, por exemplo, a cisão tradicional entre corpo e mente. Juliana tateia também o organismo híbrido humano e máquina, confundindo as fronteiras entre o orgânico e o inorgânico, situando o corpo em uma vertiginosa experiência que abarca o pós-gênero e as formas heteróclitas e diversas do corpo no contemporâneo.

Suas esculturas são também exercícios filosóficos, em que o tremor e a abissalidade do corpo revelam que “o eu é um outro”. Para Jean-Luc Nancy – que, após receber um transplante de coração se abisma diante do fato de ter, em seu corpo, uma parte de outro corpo – o corpo é um intruso. A instabilidade sustentada no gesto artístico de Juliana Cerqueira Leite revela um corpo feito de lacunas e fissuras, a partir do qual o vazio se deslinda e o mundo se reinventa. À maneira como o inconsciente freudiano subverte o sujeito, ao forjar “um outro modo de imaginarização” que embaralha dentro e fora, ausência e presença, ocorre um verdadeiro rompimento com o esquema perspectivo. Em Caminhando, obra de 1963, Lygia Clark também utiliza de forma própria esse objeto topológico, colocando em questão de forma radical a vertigem que libera o espaço de suas rígidas coordenadas.

Nos movimentos de autodefesa gerados por uma bailarina e atriz, transformados em esculturas, revela-se esse disparate que é o corpo. Diante de 48 câmeras, Meredith Glisson reproduziu cinco reações humanas, instintivas a ameaças existenciais, descritas pela etologia como fugir, lutar, congelar, assustar e implorar por piedade. Seus gestos foram transformados em um esqueleto – um wireframe – de movimentos filmados a 60 frames por segundo, sobre o qual foi sobreposta uma pele digital, vendida como “fêmea básica” no mundo de objetos digitais. As esculturas criadas pela artista revelam um segundo de movimento.

Em Escute as feras, Nastassja Martin revela que, diante do susto e do medo, algo nos antecede. Em seu livro, a antropóloga francesa relata seu impressionante confronto com um urso na floresta siberiana. No atordoante encontro, quando foi violentamente atacada, teve o corpo retalhado, dividido em dois e reassimilado em nova forma: lá está a dilaceração, a pele que se rasga, o rosto desfigurado, garras e dentes do urso com o qual lutara. Tudo ali é híbrido. Um espelhamento que, assim como o proposto pela artista, é fundamental para a superação da concepção dualista com a qual estamos acostumados. A antropóloga sobreviveu e, em seu corpo, incorporou algo do urso. Ela escreve sobre a experiência abissal de se abrir à alteridade em sua radicalidade máxima: “Não existem mais absurdos, estranhezas, coincidências fortuitas. Existem apenas ressonâncias”. Este é, também, o vertiginoso exercício apresentado nestas Outras Simetrias.

(Texto de Bianca Dias)