De novo a pergunta. Dessa vez, como em tantas, de um diligente rapaz a seu colega perplexo. Mais incisiva, porém, e mais específica. “Por que raios é que temos que ESTUDAR literatura?” Pelo que presumi, cursava faculdade noturna, depois do trabalho. Referia-se, daí, à disciplina da grade curricular que continuava a persegui-lo mesmo já no ensino superior.

Embora sentindo aquele peso morto da omissão quando os circundantes me olharam como se eu tivesse algo a declarar, abstive-me. Além do meu cansaço, não os queria molestar ainda mais palestrando sobre um motivo nobre ou utilitário qualquer. Sobretudo, porque eu me solidarizava tanto com seu desconforto quanto com sua petulância; mas não a ponto de engrossar em vão o coro contra os tão debatidos caprichos curriculares.

Não me havia acovardado, é que a defesa de algo nunca coincide com a de sua coerção. Além disso, seria redundante tirar da cartola uma réplica histórico-literária sobre a necessidade dela mesma. Pensei que aquela célebre defesa da poesia segundo a qual ela existe “porque a vida não basta” é brilhante, mas apela justo para o que está em questão: o poema. Assim como é profundo mas tautológico o argumento de que Montaigne, ao dizer que a filosofia serve para nos ensinar a morrer, quis insinuar que aprendendo a morrer é que se aprende a viver.

Recorri a essas íntimas preleções porque tenho para mim que a parábola da Torre de Babel hoje traduziria menos um problema idiomático que o das variações contextuais em um mesmo vernáculo, sobretudo quando se acirram os rancores político-ideológicos. Caducaram a metalinguagem unânime, o código absoluto, as cifras vinculadas a uma verdade transcendental.

Assinalei a palavra “estudar” da pergunta do rapaz pelo óbvio. Nesses termos didáticos a resposta também o seria: os lugares comuns da função da literatura como mostruário das boas usanças da língua a que o aprendiz deve se familiarizar, ao verniz cultural do vocabulário e da retórica, enfim. Mas pior ainda são as justificativas fraudulentas dos dogmas da economia política eivados pelos interesses e melindres ético-morais contemporâneos. Vale dizer: salvo para os aficionados, “estudar” literatura não serve lá para grandes coisas, por assim dizer.

Mas peguei o gancho da questão para refletir, talvez porque mais dia menos dia eu tinha de justificá-la para mim mesmo, não sei. Porque acho que não existe uma ficção pura, ela sempre reflete algo de nós mesmos, ainda que em transfiguração. E ocorreu de me tocar uma nota emotiva: eu havia me solidarizado com o rapaz da pergunta também por causa dos descasos com os porquês que em sala de aula repercutem a incúria maior com os porquês na vida. Nesse sentido, penso na literatura como algo íntimo, secreto, enquanto fábula da qual recorremos diariamente, como imaginação e sonho, uma jogo que sabemos que não estamos vivendo de fato mas também que não iremos morrer, como um refúgio ou como um alívio em sua variada catarse.

Aliás, além do encanto, da homenagem ou do simples entretenimento, os porquês sem resposta da vida talvez estejam na origem da literatura, em nossa inclinação por contar histórias que confabulamos em nome do ideal, do almejado ou do verossímil. Parece que, em síntese, vamos criando uma percepção do mundo mais ou menos geral, difusa, na qual distinguimos certas leis, acasos e circunstâncias que não dominamos e que, por afetarem tanto nossas vidas, precisamos recriar versões dos fatos, recortando-os, emendando-os, em busca de confirmação sem pormos a mão no fogo, de sublimação, de preparação, de modelos de experiências, de um sentido maior, de uma espécie de redenção por trás do sacrifício que não nos cabe. Como o mundo das hipóteses existe em potência, através da literatura podemos entrever nosso destino em meio a afortunadas ou fatídicas ocasiões em que por acaso elas se manifestassem.

A ficção, a fabulação literária, não deixa de ser um registro, um repertório de situações conjecturais mais complexas que cumprem no entanto com os ditames de uma realidade cujos mecanismos não compreendemos muito bem, que não enxergamos face a face. Ela nos possibilita uma interpretação mais vasta dos acontecimentos, de suas entrelinhas, porque tende a enquadrá-los dentro de um todo, de um limite espaço-tempo mental. Mesmo quando o narrador titubeia sentimos que ele possui certa onisciência. Do mesmo modo que nós mesmos ao narrarmos um evento qualquer para um grupo de pessoas. Ainda que sem entender muito bem o ocorrido, contamos com pressupostos e com as ilações dos nossos ouvintes.

O teatro, o cinema, os livros, não deixam de ser veículos que remediam de forma coletiva — mais eficientes, portanto —, nossa carência por uma espécie de ficção compartilhada. Pública, ela se torna como que mais autêntica. Basta ter a experiência de ouvir uma música de que gostamos muito no rádio, ela parece ser bem mais impactante do que quando a ouvimos sozinhos em casa em um toca discos, por exemplo.

A linguagem verbal, hoje tida como o único apanágio que nos distingue de outros seres semelhantes, não deve ser apenas uma articulação sonora de biológicos órgãos fonadores. Há algo nela que pressupõe também sua capacidade de nos transcendermos. Creio que a literatura, assim como a música cantada, seja um exemplo desse seu atributo. Mas nem por isso a literatura pôde se furtar ao longo caminho que teria de percorrer.

No princípio, era [apenas] o verbo: artefatos arqueológicos dão conta de que as primeiras inscrições encontradas, cunhadas em tabletes de argila, foram registros “contábeis” de meras operações comerciais portuárias, e não – para decepção dos entusiastas – o esboço de uma proto literatura. A palavra “verso”, a propósito, antes de o poema existir em forma de texto gráfico, era o nome com que se designava o sinuoso desenho do vai-e-vem que o rústico arado camponês esburacava no solo.

Em suma, a linguagem é antes de tudo um cerne cujo registro vai constituindo um repositório onde aprovisionamos não apenas conhecimento, mas também o próprio acervo verbal com que articulá-lo e desenvolvê-lo.

A embrionária e industriosa criptografia da faina cotidiana foi o que ensejou o aprimoramento linguístico ulterior como depositário dos rudimentos de uma possível ciência futura, ao passo que também foi sedimentando as capacidades oratórias de nossas vicissitudes líricas, épicas, dramáticas. A literatura foi esse devir retroalimentar em que nos alimentamos para podermos reproduzir no acúmulo de uma variegada memória coletiva, brutal e sutil.

Como os pitagóricos em relação à música e à matemática, quando percebemos que a linguagem possuía uma natureza própria, uma estrutura intrínseca, ela assumiu um caráter de fenômeno. Através do estudo de sua versão escrita em alguma medida poderíamos destrinchar seus arcanos. Nos livros passou a pairar uma espécie de misteriosa gravitação. (A cabala parece ser uma amostra exacerbada dessa percepção e da busca por elucidá-la).

Entre as chamadas artes liberais da Idade Média, a gramática constava entre as que compunham o chamado trivium, cujo aprendizado era recomendado apenas a adultos com mais de trinta anos. Ou seja, aos já iniciados, aos interessados mas com certo traquejo no manejo dos textos e sua implicação na realidade. Varrão (116 - 27 a.C.), um dos seus primeiros fomentadores, rir-se-ia se lhe contassem que no futuro se tornaria uma tarefa, uma obrigação.

Alguns séculos depois do último César, os dirigentes da cristandade deram-se conta de que a exegese e a expansão da doutrina precisavam de um elevado letramento, de uma condensação linguística que resistisse às investidas de uma razão que o próprio credo católico havia feito aflorar com o tempo. A velha patrística, baseada meramente na profissão de fé dos evangelhos canônicos, já não era o bastante para converter culturas e indivíduos ilustrados de outras paragens. Acontece que, para o necessário ensino e consolidação de uma erudição histórica e mesmo metafísica, não havia a quem recorrer senão aos livros antigos.

Naquele fragmentado conjunto estava o manancial da retórica, do domínio dos jogos de palavras, da composição de imagens, dos hipérbatos e silogismos com que organizar e expor ideias e pensamentos, da precisa formulação dos problemas matemáticos e astronômicos, da desambiguação da justiça, da ornamentação eufônica e do aprofundamento da linguagem e da cultura, do enobrecimento da nossa condição por meio de um instrumento que assim lapidado podia bem ser um dom, uma dádiva.

Mas eis o dilema: os clássicos literários e filosóficos greco-romanos não eram cristãos. Cícero, o mais eloquente dos homens de estado romano, havia vivido um impasse parecido. Para encontrar muitas das expressões com que externalizar suas ideias e pensamentos, amiúde teve de beber no chafariz provincial da literatura dos velhos sábios gregos.

Como exercício ou para contestá-los, em laboriosos e compenetrados monastérios medievais, obstinados homens de sotaina e celibato houveram-se com a tarefa de tentar reproduzir os escritores ditos pagãos. E o que foi assim um dilemático ofício missionário tornou-se depois, para muitos, uma paixão e uma arte. (Contrariando Paulo Apóstolo, não por acaso foi que Dante preservou Platão e Virgílio, e tantos outros homens de letras, do seu Inferno). Mesmo quando a própria Idade Média já possuía autores dotados de talentosa erudição para firmarem sua própria influência — como Tomás de Aquino que, assimilando Aristóteles, demonstrara que fé e razão não eram excludentes entre si —, os poetas, comediógrafos, dramaturgos, historiadores, filósofos, enfim, o legado dos autores clássicos já havia se tornado um indispensável patrimônio da humanidade.

O Renascimento pode ter sido uma tentativa de ruptura, mas suas raízes mais fundas indicam que foi um sucedâneo natural das leituras a que a hoje injustamente desmerecida época anterior dedicou-se, e que aos poucos acabou por se deleitar, emular, preservar e transmitir.

Não deve ser uma mera coincidência que Newton, Adam Smith, Darwin, Weber, Freud, entre tantos outros grandes homens de ciência, tenham sido antes de tudo bons escritores, e que não foi senão através da literatura que encontraram verve e ardor para publicarem seus próprios livros. Assim como apenas com uma razoável bagagem da mesma matriz literária é que seus leitores os podiam apreciar e absorver.

No entanto, isto não desabona o fato de nós, simples e despretensiosos mortais, questionarmos a necessidade de se “estudar” literatura. (Assim como aos vocacionados para as disciplinas sociais queixarem-se contra a química inorgânica e o cálculo integral). Mas desacredito que alguma justificativa apologética possa atrair prosélitos para qualquer dos lados da fronteira. Os textos têm de falar e convencer por si. O mero louvor decai em lisonja.

Mesmo em um tremendo esforço pessoal, admito que jamais consegui concluir o Ulisses, de James Joyce; em Dostoiévski sempre me torturaram o caos e a depressão; Kafka pareceu-me a encarnação da paranoia; Proust, ou eu o lia ou eu tratava de ir viver a minha vida. Imagino o martírio que deve ser para um adolescente atual ter de ler autores do século XIX com o único intuito de obterem boas notas.

Hoje, com o advento da internet, e da individuação que a propiciou, é quase um masoquismo optar por trocentas páginas de um datado romance em vez do célere conforto de uma miríade de resumos ilustrados, de sinopses imagéticas, de canais no youtube, de uma cinematografia com versões atualizadas ao contexto contemporâneo, de séries de tv por assinatura, de manchetes em mensagens de aplicativos, enfim. A literatura parece um adendo deste mundo codificado em áudios e imagens, um órgão vestigial, uma espécie de survival antropológico.

A literatura, porém, tende a ser uma fonte primordial. É uma questão de essência. Em sua qualidade, na profundidade do seu conteúdo, seja qual for a forma – se impressa em pergaminhos de tripa de carneiro, em brochuras de celulose ou em dispersos textos virtuais –, que hão de se inspirar, para o bem ou para o mal, os porta-vozes de nossa civilização, quais sejam: os roteiristas, os articulistas, os proponentes de questões vestibulares, os legisladores, os redatores de notícias, os oradores, os intérpretes da economia política, e assim por diante.

Sem um agregado histórico-literário, saiba-se ou não, declina a civilização. (Talvez sem saber, Teodósio e Constantino, e seus teólogos, puseram isto em prática ao decretarem o vínculo do Novo com o Velho Testamento: a vantagem de uma legitimação histórico-literária superava o antissemitismo). A famosa e espúria imagem do imenso iceberg submerso mostrando apenas sua ponta diminuta representa bem a sorte da literatura.

Uma nota sobre o problema ideológico que tanto pode legitimar como impugnar a leitura: tal dilema é tão antigo quanto a própria literatura. Leitura do quê, afinal? Leitura de quem, cara pálida? Ou seja, sua relevância pode reivindicar uma questão de essência, mas sua aceitação pode suscitar uma questão de princípios, de convicções. Assim foi que o comovente e desajeitado movimento romântico, em sua origem mais recôndita, era uma espécie de insurreição, de bravata também, um descarrego contra o ufano racionalismo dos então aclamados iluministas.

Mais contundente é o fato de que para hebreus e cristãos mais ortodoxos, o Alcorão não passa de uma inspiração demoníaca. E do contrário, serve de ilustração aquela memorável passagem teatrológica de Bernard Shaw (1856 - 1950) na qual um conselheiro islâmico tenta persuadir o comandante das invasoras tropas muçulmanas a não atearem fogo na célebre Biblioteca de Alexandria alegando que ali arderia a memória da humanidade, ao que o emir ou o califa teria dito: “que arda, é uma memória de infâmias!”.

Para fim de conversa, é preciso imaginar a cínica alegação de um apócrifo discípulo de Diógenes de Sinope, que justificaria a literatura dizendo que sim, que é imprescindível que desenvolvam a engenharia, a medicina, a economia e o direito, que saciem as necessidades fisiológicas, que prologuem a vida e mitiguem a dor e a angústia, mas tudo isso na verdade tem a ver com a busca imemorial pelo abrigo, saúde, segurança e estabilidade de um tempo, de um lugar, onde possamos nos relegar à contemplação da vida através de bons livros.

Mas – quem sabe? –, como sonhou Huxley, um tal mundo perfeito talvez prescinda de literatura, assim como de história, filosofia e religião, onde elas seriam apenas sintomas de ânsias e perplexidades obsoletas. Sendo assim, uma derradeira justificativa para a literatura seria o necessário cultivo da quimera de um mundo hipotético onde ela mesma não seria mais necessária.